Educação e fiscalização garantem a sobrevivência de espécies

Da ECO-92 à RIO+10

Medidas provisórias são fonte de biopolêmica:
Ulisses Capozoli

A trajetória inacabada de uma regulamentação:
Cristina Azevedo e Eurico Azevedo

Preservação e bioprospecção:
Mário Palma, Tetsuo Yamane e Antonio Camargo

Agricultura e Biodiversidade: João Paulo Teixeira

Microorganismos produzem plásticos biodegradáveis:
Luziana da Silva, Maria Rodrigues e José Gomez

O Biota Fapesp:
Carlos Joly

Redes eletrônicas em biodiversidade:
Dora Canhos, Sidnei de Souza e Vanderlei Canhos

Bibliografia

 

Medidas provisórias são fonte de biopolêmica

Ulisses Capozoli

Não é só em relação à energia elétrica que a legislação divide opiniões. Na área da biodiversidade, o uso repetitivo de medidas provisórias também gera tensões e, desde a promulgação da Constituição de 1988, vem estimulando o que cientistas, empresários e ambientalistas conhecem como biopolêmica.

Na verdade tanto o reconhecimento da biodiversidade como a biopirataria, a exploração não autorizada desses recursos, não são debates recentes no Brasil. O que não significa que tenhamos conseguido disciplinar satisfatoriamente o uso de riquezas naturais, fazendo com que uma exploração sustentável assegure, não só a manutenção dos recursos, mas também o retorno dos benefícios às populações das regiões onde estão disponíveis.

Talvez o primeiro suspeito do que hoje seria um biopirata tenha sido o naturalista e explorador alemão Alexander Humboldt (1769-1859) o maior nome do período clássico da geografia física e da biogeografia. Em 1800, informações desencontradas obtidas pela Coroa portuguesa foram transmitidas para Belém e as capitanias de Pernambuco e Ceará, proibindo a entrada no Brasil, "seja qual fosse o local, de um certo Barão de Humboldt, que sob a capa de fazer observações científicas vinha, isto sim, subverter com idéias falsas, o ânimo do povo nas terras do Brasil", segundo registra Osvaldo Rodrigues da Cunha em O Naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira.

Em 1808, com a corte já instalada no Rio, D. João VI revogou as proibições à entrada de Humboldt e chegou a convidá-lo a conhecer o Brasil. O naturalista não pode atender ao convite, mas seus biógrafos dizem que ele divertiu-se ao saber que tinha sido considerado suspeito aos olhos da Coroa. Em 1854, Humboldt ajudou o Brasil na resolução das fronteiras com a antiga Guiana Inglesa, Venezuela e Colômbia e por isso recebeu, em 1855, a maior distinção do Império, a Grã-Cruz da Imperial Ordem da Rosa.

Outro suspeito potencial teria sido Alfred Wallace que, entre 1848 e 1852, esteve explorando o Rio Amazonas e, na confluência das águas do Solimões com o Rio Negro, preferiu investigar o segundo rio até seu curso superior. Wallace foi co-descobridor da seleção natural e uma carta que enviou a Charles Darwin, consultando-o sobre este assunto, foi o que levou Darwin, após mais de duas décadas de indecisão, a finalmente publicar seu Origem das Espécies, em 1859.

O mais eficiente do que hoje seria considerado um biopirata foi Richard Spruce, um dos maiores botânicos e exploradores da Amazônia. Nascido na Inglaterra, em 1817, de família muito pobre, Spruce se ressentiu de dificuldades financeiras por toda a vida. Foi um naturalista profissional, ainda que de formação auto-didata.

Spruce desembarcou em Belém em julho de 1849, onde encontrou-se com Wallace e Henry Bates, também naturalista. Estava a serviço de pelo menos onze herbários europeus para coletar amostras e enviá-las aos interessados.. Em 1864, quando viajou de volta para a Inglaterra, levou pelo menos 30 mil plantas, além de mapas, sem considerar uma infinidade de sementes que já havia enviado por outros meios. Entre essas sementes estavam espécies de seringueiras, produtoras de látex, além de plantas para uso medicinal.

Após 17 anos de trabalho na Amazônia, Spruce, como que antecipando-se aos interesses do futuro, teria lamentado, como registra Cunha, "que todo o norte da América do Sul, com a Amazônia brasileira, não estivesse em mãos dos ingleses". Cunha identifica Spruce como "um imperialista, autêntico representante da era vitoriana e contra os latino-americanos". De qualquer maneira, Spruce morreu pobre e esquecido, em 1893, e suas notas de longas viagens foram publicadas, graças à intervenção de Alfred Wallace, em dois volumes que saíram em 1913.

Mas mesmo um naturalista brasileiro, Alexandre Rodrigues Ferreira (1756- 1815), acabou vítima de biopirataria, por uma ação combinada de negligência portuguesa e astúcia francesa. Por dez anos, entre 1783 e 1793, Ferreira, nascido em Salvador, percorreu o Brasil Central, o Amazonas, o Negro e uma infinidade de outros rios na sua Viagem Filosófica pela Amazônia e Mato Grosso.

Ferreira, que estudou em Coimbra, iniciou sua viagem sob patrocínio português ainda submetido à política do sigilo que vinha desde as viagens de descobrimentos, do século 16. Daí a dificuldade que encontrou, em Lisboa, para publicar os resultados de seu trabalho. A razão disso, ainda na avaliação de Cunha, é que "não havia na época intuito algum de se divulgar estudos científicos fundamentais de um mundo desconhecido aos europeus, ávidos de informações e novidades".

Há alguma discordância entre os historiadores se o material reunido por Alexandre Rodrigues Ferreira foi saqueado pelos invasores franceses ou transferido, com concordância portuguesa, para a França. O certo é que todo seu trabalho foi roubado, no melhor estilo pirata, por parte de Geoffroy St. Hailaire.

O que faz os naturalistas estrangeiros serem enaltecidos, enquanto pesquisadores brasileiros permanecem desconhecidos no Brasil? Guilherme de La Penha, ex-diretor do Museu Emílio Goeldi, atribuiu esta condição ao "confronto cultural entre o desenvolvimento e o permanente estado de letargia dos países em eterno estado de pré-desenvolvimento".

Talvez por isso, na memória da maioria das pessoas, especialmente na Amazônia, certamente o transplante de seringueiras para a Malásia, no começo do século passado, foi o maior saque contra os recursos naturais no Brasil. A retração da borracha, que havia urbanizado Manaus e Belém, quando Rio de Janeiro e São Paulo ainda tinham ares de colônia, trouxe a maior crise já vivida pela Amazônia em termos de exploração de seus vastos recursos naturais.

A retomada das preocupações envolvendo a biodiversidade no Brasil, depois de serem incluídas na Constituição de 1988, deu-se com a assinatura da Convenção Sobre Diversidade Biológica, durante a Rio-92. O acordo reafirma a soberania dos países sobre seu patrimônio genético, ao mesmo tempo em que os países signatários se comprometem a facilitar o acesso a esses recursos com a condição de consentimento prévio e de comum acordo com as partes interessadas.

O acordo sobre biodiversidade prevê também que os países que usarem recursos genéticos originários de outra nações devem garantir a repartição eqüitativa de seus benefícios econômicos. Em 1994, pelo Decreto Legislativo 2/94, o Congresso Nacional ratificou a convenção.

No ano seguinte, em 1995, a senadora Marina Silva (PT-Acre), enviou ao Congresso projeto de lei (306/95) regulando o acesso e o uso da biodiversidade. Em 1996, no entanto, o governo federal preferiu criar o Grupo Interministerial de Acesso aos Recursos Genéticos (Giarg), submetido à Casa Civil, além de ter a participação de vários ministérios e órgãos afins.

Em 1998, o Giarg encaminhou novo projeto de lei ao Congresso com a preocupação de deixar sob responsabilidade do Executivo a definição de competência de órgãos. A biodiversidade acabou vinculada ao Projeto de Emendas Constitucionais que declara bem da União o patrimônio genético brasileiro. Sem legislação específica, a biodiversidade está regulada por medidas provisórias já reeditadas por nove vezes sem possibilitar um consenso entre as partes envolvidas: Estado, empresas e comunidade científica, além de grupos ambientalistas.

Além disso, a exploração da biodiversidade e sua vigilância, ao menos na Amazônia, ainda se ressentem de infraestrutura, como ficou evidenciado no encontro especial que a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) fez em Manaus, em fins de abril passado.

A Amazônia tem uma carência crônica de pesquisadores científicos, laboratórios, bolsas de estudos para desenvolvimento de recursos humanos e mesmo pessoal bem equipado para vigilância ambiental. Um único fiscal do Ibama, sem equipamentos específicos, como barcos a motor, deve cuidar, em média, de uma área de 7 milhões de hectares. Como é uma tarefa impossível de se cumprir, o espaço fica aberto para as mais diferentes formas de biopirataria.

Biodiversidade, como define a pesquisadora Marlúcia Martins, do Museu Emílio Goeldi, em Belém, "é a propriedade de grupos ou classes de entidades vivas de serem variadas, isto é, comportar mais de um tipo, possuir diferenças. A biodiversidade, como a complexidade, é atributo dos sistemas biológicos e se manifesta em todos os seus níveis hierárquicos, como moléculas, genes, indivíduos, populações e espécies".

Assim, ainda que a biopirataria apareça na mídia como uma das ameaças mais temíveis, o desmatamento, na Amazônia induzido especialmente pela abertura de estradas, e sem a vigilância necessária, é uma das maiores ameaças à biodiversidade. Mesmo a introdução de culturas agrícolas com mercado internacional, caso da soja, milho, ou laranja podem, em regiões como a Amazônia, afetar culturas que passaram por melhorias genéticas ao longo de dez mil anos de história de ocupação humana, como é o caso da pupunha.

Charles Clement, pesquisador do Instituto de Pesquisas da Amazônia (Inpa) assegura que há 10 mil anos, quando a Amazônia começou a ser ocupada, a pupunha pesava um grama, contra os 200 gramas atuais. A pupunha, como outras frutas da Amazônia, dependeram do homem para se desenvolver aos níveis atuais. Se forem abandonadas, no entanto, devem recuar ao estágio natural e, neste sentido, representariam uma alteração no patrimônio da biodiversidade.

Por tudo isso, assegurar a manutenção e exploração do patrimônio genético, passando pelo conhecimento tradicional de caboclos e populações ribeirinhas demandam não apenas um aprimoramento da legislação, mas uma visão do Brasil como um todo. Um conjunto que deve ser preservado para que suas partes possam expressar, cada uma delas, as suas mais diversas potencialidades. No exato momento em que o leitor acompanha estas linhas, pelo menos 60 línguas indígenas morrem lentamente na região. Assegurar a biodiversidade é, também, uma corrida contra o tempo, contra a inércia e a falta de perspectivas. E este é um desafio ainda longe de estar vencido.

Ulisses Capozoli, jornalista especializado em divulgação científica é historiador da ciência e presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC)

Atualizado em 10/06/2001

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