Educação e fiscalização garantem a sobrevivência de espécies

Da ECO-92 à RIO+10

Medidas provisórias são fonte de biopolêmica:
Ulisses Capozoli

A trajetória inacabada de uma regulamentação:
Cristina Azevedo e Eurico Azevedo
O valor da biodiversidade:
Paulo Coutinho

Preservação e bioprospecção:
Mário Palma, Tetsuo Yamane e Antonio Camargo

Agricultura e Biodiversidade: João Paulo Teixeira

Microorganismos produzem plásticos biodegradáveis:
Luziana da Silva, Maria Rodrigues e José Gomez

O Biota Fapesp:
Carlos Joly

Redes eletrônicas em biodiversidade:
Dora Canhos, Sidnei de Souza e Vanderlei Canhos

Bibliografia

 

O valor da biodiversidade

Paulo Coutinho

Qual o valor da biodiversidade? Se imediatamente pensamos que uma quantidade de dinheiro, mesmo extremamente elevada, é a resposta, fizemos uma equivalência; haveria assim uma possibilidade de compararmos dinheiro a algo tão complexo. Se igualamos a biodiversidade - e há quem fale em "capital natural" - a um estoque qualquer de um produto ou matéria-prima, haveria uma comparabilidade que nos permitiria expressá-la em unidades monetárias. Esse raciocínio está baseado no pressuposto da indiferença na perspectiva de um consumidor individual: dado um montante de dinheiro disponível, um consumidor, supostamente bem informado e, portanto, racional, escolheria entre os bens e serviços necessários para sua satisfação.

A biodiversidade, quando apresentada como apenas um estoque não diferenciado de outros recursos econômicos, estaria sujeita a racionalizações como a apresentada. Se trocamos o dinheiro do consumidor individual por um certo patamar de desenvolvimento econômico chegamos mais perto de questões discutidas internacionalmente desde o início dos anos 70. O objetivo, para muitos, seria alcançarmos uma "escolha ótima" entre determinado nível de desenvolvimento econômico, expresso em expansão da produção (PIB) e a preservação ambiental. A idéia, nem sempre explícita, de que a Amazônia deveria apresentar um desenvolvimento "com o máximo de preservação possível" esclarece o mecanismo que opõe crescimento econômico e manutenção da biodiversidade como escolhas a serem de alguma forma equilibradas em uma "decisão ótima".

Com o estabelecimento da comparabilidade entre dinheiro ou desenvolvimento econômico - que pode ser expresso em unidades monetárias - e a preservação ambiental, abre-se a possibilidade de medir em dinheiro a manutenção total ou parcial de ecossistemas e, por fim, mesmo da biodiversidade. A que tipo de conclusão pode levar esse raciocínio explicita-se com as discussões sobre o efeito estufa e a análise de alguns economistas: não faltaram aqueles que apontaram para o fato de que a economia americana depende muito pouco de sua produção agrícola e que, portanto, o impacto causado por eventuais mudanças climáticas seriam também pouco importantes, pois acarretariam uma pequena queda na produção total dos Estados Unidos. Mesmo que a produção agrícola nesse país fosse reduzida à metade, o impacto seria relativamente pequeno; só faltou a esses economistas a percepção de que sem alimentos todo o resto da produção estaria comprometida, pois os americanos ainda comem.

Se os mesmos economistas fizessem um cálculo de quanto seria necessário de manutenção da atual biodiversidade para manter a atual produção agrícola mundial poderíamos chegar, por inferência, a um valor monetário da manutenção de todos os ecossistemas da Terra. Se a Amazônia, por exemplo, responde parcialmente pela manutenção do equilíbrio climático planetário, então gera um benefício para fora de suas fronteiras; alguns economistas chamam a isso de uma externalidade positiva. O valor financeiro dessa externalidade poderia ser assim calculado porque estaria expresso na manutenção das condições de produção de riqueza fora da Amazônia. Uma conclusão a que já se chegou com esse raciocínio é de que os habitantes da região deveriam ser pagos para a manutenção desse "serviço" prestado pela floresta.

Esses procedimentos seriam válidos se tomássemos a riqueza gerada na produção de bens e serviços como algo comparável e substituível pela biodiversidade. E aí entramos no meio de um intenso debate que mobiliza há décadas governos, ONGs e instituições internacionais. Determinadas perdas em "quantidades" de biodiversidade podem nos levar ao fim de ecosssistemas inteiros, o que seria uma perda irreparável. A biodiversidade não é um estoque qualquer; não tem substituto perfeito nem aproximado. Ainda inúmeras espécies não foram nem mesmo catalogadas, quanto menos avaliados seus eventuais usos. Não temos, assim, a possibilidade de uma "escolha racional", já que tratamos de algo desconhecido. Escolher entre desenvolvimento econômico e preservação ambiental não guarda nenhuma semelhança com a escolha entre sapatos e camisas. O princípio que deve prevalecer aqui é o da precaução, dado nosso desconhecimento.

A biodiversidade não é homogênea como um estoque de trigo ou de televisores. Em todo o planeta, os ecossistemas são únicos e apenas parcialmente comparáveis. A complexidade da biodiversidade não nos permite pensá-la em quantidades ou partes e, ainda mais, como não há nenhuma segurança quanto ao funcionamento de sistemas extremamente complexos como a Amazônia - se podemos dizer que a Amazônia "funciona" - não se sabe qual seria o ponto de devastação a partir do qual o desequilíbrio poderia levar à completa degradação ou colapso desse ecossistema: não conhecemos o ponto de "não retorno". Supormos que há escolha entre produção de riqueza econômica e a manutenção da biodiversidade pode nos levar a equívocos extremamente graves.

Mas, enfim, a biodiversidade não tem um valor? Se pedimos às pessoas para dizerem quais são seus valores podemos eventualmente ouvir que é ser muito rico; mesmo para essas pessoas (e para aquelas que pensariam mas não ousariam dizer) o dinheiro estaria relacionado como um meio para possuir bens e serviços relacionados ao bem-estar material, associados a uma vida feliz ou, pelo menos, mais feliz. Ainda assim, um milionário trocaria todo seu patrimônio por água potável se estivesse perdido em um deserto.

Trata-se, quando falamos de biodiversidade, da manutenção da vida, não de uma espécie ou de uma proteína que a indústria farmacêutica eventualmente possa retirar de vegetais utilizados há milênios por uma população tradicional. Se a indústria, neste caso, patenteia o conhecimento de uma tribo da Amazônia e consegue medir o lucro apurado, o valor dessa planta para um pajé, no entanto, continuaria sendo outro: a preservação da cultura de seu povo. A biodiversidade, muitas vezes mantida e conhecida em seus segredos por povos em todo o planeta por milênios, pode ser fonte para um valor financeiro apurado em balancetes. Mas a manutenção da vida na Terra, tem um valor que não pode ser apurado por um raciocínio contábil ou financeiro qualquer, por melhores que sejam seus computadores e seus modelos de análise.

A biodiversidade tem um valor intrínseco: trata-se de mantermos as condições de permanência da vida; é, portanto, incomensurável. Senão, que medida usaríamos para medi-la? Número de espécies, fluxos de energia, unidades monetárias ou qualquer outra medida pode nos dar algumas referências parciais. Não conseguimos atribuir um valor financeiro à nossa própria vida, ainda que as companhias de seguro façam lá suas contas. Essas mesmas empresas, no entanto, não se arriscariam a fazer seus cálculos para a vida no planeta - assim esperamos - pelo absurdo de que com o fim da biodiversidade não teríamos ninguém para receber ou pagar o prêmio do seguro.

Paulo Coutinho é economista, mestre em Ciências Ambientais e doutorando em Ciências Sociais (Unicamp)

Atualizado em 10/06/2001

http://www.comciencia.br
contato@comciencia.br

© 2001
SBPC/Labjor
Brasil