Reportagens






 

Tecnologia e (des)emprego

Marcia Leite
DECISAE/FE

Um dos debates mais recorrentes nas disciplinas que estudam o trabalho consiste na relação entre o desenvolvimento tecnológico e o emprego. Especialmente no que se refere à capacidade de a economia continuar gerando emprego com a introdução de equipamentos tecnologicamente mais sofisticados, a discussão é sempre acirrada, fazendo aflorar opiniões muito diferentes, quando não totalmente controversas.

O debate a que assistimos nos dias atuais não apresenta, nesse sentido, um caráter inusitado. Ao contrário, ele é o reflexo de um momento de profundas transformações na base tecnológica, com a substituição da tecnologia eletromecânica pela microeletrônica. Esse salto tecnológico - de tal magnitude que vem levando muitos estudiosos a falar em uma Terceira Revolução Industrial - não poderia ocorrer, evidentemente, sem profundas implicações para o emprego. Mas, se tais implicações são inegáveis, é também indubitável que a inovação tecnológica não atua sozinha sobre o mercado de trabalho, mas ao lado de um conjunto de fatores, sem os quais torna-se incompreensível a atual crise do emprego.

Para compreendê-la mais claramente é, portanto, necessário levar em conta que as transformações tecnológicas não vieram sozinhas, mas no contexto de um conjunto de transformações econômicas, políticas e sociais que marcaram o fim do pacto fordista e a crise de um conjunto de instituições que com ele se erigiram.

De fato, enquanto forma de regulação, o fordismo, que teve o seu período glorioso nas três décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, começou a apresentar sinais de exaustão desde o final dos anos 60. Por um lado, o movimento social que marcou os anos 1968 e 1969, trouxe à tona uma profunda crítica à organização fordista do trabalho, baseada no autoritarismo, no controle, nos ambientes perigosos e insalubres de trabalho, na difusão do trabalho desqualificado, sem conteúdo e repetitivo - que o parcelamento das tarefas e a profunda divisão entre concepção e execução promoviam. Por outro lado, o acirramento da competição intercapitalista com a difusão dos produtos japoneses e europeus no mercado internacional com capacidade de concorrer com a produção americana fez emergir a inadequação de uma forma de organização da produção e do trabalho baseada na produção em massa de produtos estandardizados. Esses dois fatores desferiram, cada um por seu lado, um duro golpe à organização fordista do trabalho. Não só a crítica operária trazia à tona a necessidade da busca de novas formas de organização do trabalho, como o acirramento da concorrência jogava por terra a produção em série, tendo em vista a urgência de uma produção mais variável e flexível, de modo a atender de forma mais imediata às exigências do mercado. É nesse contexto que a introdução da tecnologia microeletrônica cairá como uma luva às novas características do mercado. Com sua flexibilidade, ela acentuou a inadequação da rigidez da base técnica anterior ao novo momento.

É nesse quadro que as crises do petróleo dos anos 70 terão o papel de desferir o golpe de misericórdia no pacto fordista. Com ele, desarticula-se o Estado intervencionista e as políticas keynesianas, adotadas no pós-guerra, foram dando lugar a uma volta dos ideais liberais que pouco a pouco foram derrubando as barreiras protecionistas nacionais. Isso significou a brutal diminuição da proteção de mercados nacionais por parte do Estado, conformando um grande mercado global, onde a livre competição das empresas deveria estar assegurada pela inexistência de protecionismos estatais.

Nesse contexto, as transformações que começam a ocorrer a partir dos anos 80 vão ter um profundo impacto sobre o emprego devido a um conjunto de fatores que emergem ao mesmo tempo, cada um deles com uma diferente contribuição ao aumento das taxas de desemprego. Entre eles, valeria destacar:

1) O fim do Estado intervencionista e desenvolvimentista que, quando não garantia o pleno emprego (como no caso da maior parte dos países europeus), permitia uma contínua integração dos trabalhadores na economia capitalista, tendo em vista as altas taxas de desenvolvimento alcançadas, como no caso do Brasil;

2) As baixíssimas taxas de desenvolvimento econômico impostas às economias devedoras pelos organismos internacionais;

3) O uso intensivo de novas tecnologias microeletrônicas, altamente poupadoras de mão-de-obra, sem nenhuma correspondência com a diminuição da jornada de trabalho.

Mas é importante considerar também que os efeitos das transformações econômicas, políticas e tecnológicas sobre o mercado de trabalho não se referem apenas ao aumento das taxas de desemprego, mas também à qualidade do vínculo empregatício, com o aumento do trabalho sem carteira assinada, sem direito às garantias da legislação trabalhista, como férias, décimo terceiro salário, licença maternidade e aposentadoria, entre outros. No que se refere a essa questão, as transformações têm a ver especialmente com as mudanças que vêm ocorrendo na estrutura industrial, ou seja, na relação entre o conjunto das empresas que participam da produção das mais variadas linhas de produtos.

Os estudos sobre as transformações na organização industrial elucidam que a tendência ao enxugamento das empresas, que está substituindo a organização industrial fordista - baseada na grande empresa que se relacionava diretamente com um grande número de fornecedores - vem gerando a estruturação de cadeias produtivas constituídas por vários níveis de fornecimento. A estrutura industrial fordista cede lugar, assim, a uma articulação marcada por uma assimetria de poder, concentrado na empresa líder. A ela corresponde a concentração da produção de bens de maior valor agregado, maior conteúdo tecnológico e, nessa medida, do trabalho qualificado, estável, bem pago e com perspectiva de carreira, o qual escasseia sensivelmente à medida que se avança na cadeia de fornecimento.

Evidencia-se, dessa forma, a desigualdade das condições de emprego e de trabalho ao longo das cadeias, ao mesmo tempo em que se destaca seu caráter contraditório e complementar: a estabilidade dos trabalhadores das empresas líderes se dá às expensas da flexibilidade na contratação que caracterizam os fornecedores, assim como o trabalho qualificado concentrado nas primeiras é fruto da divisão do trabalho entre as empresas da cadeia, o que relega os trabalhadores dos últimos níveis de fornecimento à execução de trabalhos repetitivos e destituídos de conteúdo.

Da mesma forma, evidencia-se que esse processo é alimentado pela tendência à focalização da produção e à externalização de parcelas cada vez mais importantes do processo produtivo, provocada, seja pela busca da flexibilidade, seja pela tentativa das empresas em evitar o capital imobilizado num contexto de grandes ganhos no mercado financeiro; nessas condições, cada vez mais importantes parcelas do processo produtivo tendem a ser terceirizadas para outras empresas, nutrindo a cadeia de suprimento. Mais grave ainda, a continuidade desse processo tende a tornar o trabalho cada vez mais escasso na ponta virtuosa, ao mesmo tempo em que as novas oportunidades de trabalho tendem a se restringir à ponta precária das cadeias de produção.

Com efeito, como o aprofundamento do processo é marcado pela contínua expulsão de trabalhadores das empresas líderes das cadeias de produção para as provedoras, o trabalho tende a se reduzir cada vez mais na ponta virtuosa do processo e a se propagar no outro extremo da cadeia, onde abundam os baixos salários, as más condições de trabalho e a precarização do emprego (Leite, 2003).

De fato, conforme se aprofundam as investigações, evidencia-se não só o crescimento do trabalho sem registro, mal pago e destituído de conteúdo, mas também que os problemas relacionados às relações de emprego, às características do assalariamento e às condições de trabalho não atingem a população trabalhadora da mesma forma. Ao contrário, eles tendem a se imbricar de forma diferenciada com os vários segmentos do mercado de trabalho, de acordo com suas características, sejam elas adquiridas - como escolaridade e qualificação profissional, sejam elas adscritas - como raça, idade e sexo (Hirata e Kergoat, 1998).

Uma das principais reflexões a que essa discussão vem dando lugar é que contrariamente ao que ocorreu no período anterior da acumulação capitalista, o desenvolvimento econômico não mais significa uma correspondente expansão do emprego. Ademais, ele inverte a tendência predominante na etapa anterior da expansão capitalista de uma progressiva expansão do emprego no setor moderno da economia e na grande empresa capitalista, que promovia um processo contínuo de integração dos setores marginalizados. Conforme discutimos acima, as transformações em curso vêm sendo acompanhadas, seja pelo aumento das taxas de desemprego, seja pelo crescimento do emprego precário em uma nova relação entre os setores moderno e marginalizado da economia, em que o avanço do primeiro não mais significa o debilitamento do segundo, mas antes sua reanimação ou sua (re)criação em novas condições.

Se, por um lado, esse quadro nos alerta para a indesejável realidade social que vem se impondo, ele nos adverte, por outro lado, para a urgência de que sejam encontradas novas formas de regulação social que possam por sob controle a reprodução de capital (Dowbor, 1998). Embora seu formato seja ainda indefinido, é importante destacar que ela pressuporá certamente novos papéis às entidades que foram centrais no momento anterior da acumulação, como o Estado e os sindicatos.

Bibliografia:

Dowbor, L. (1998) A reprodução Social: propostas para uma gestão descentralizada, Petrópolis, Vozes.

Hirata H., Kegoat D. (1998) ¨La division sexuelle du travail revisitée¨, in Les nouvelles frontières de l'inégalité. M. Maruani (sous la direction de), Paris, la Découverte.

Leite, M. (2003) Trabalho e Sociedade em Transformação. Mudanças produtivas e atores sociais, São Paulo, Fundação Perseu Abramo.


Observações

Estamos utilizando aqui o termo fordismo para designar não apenas o modo de organização do trabalho, (baseado na divisão entre o planejamento e a execução de tarefas e o extremo parcelamento do trabalho que caracterizou a correia transportadora fordista que predominou mundialmente até os anos 70), mas o conjunto de instituições que acompanharam a difusão dessa forma de organização do trabalho e que promoviam a regulação da acumulação capitalista, como o Estado intervencionista, a política de pleno emprego e de repasse automático dos aumentos da produtividade aos salários, a implementação da legislação trabalhista, a criação da Sociedade do Bem Estar Social etc. Embora esse tipo de Estado não tenha se difundido em todas as localidades da mesma forma, a presença do Estado intervencionista e desenvolvimentista, promovendo a expansão do emprego foi uma característica das sociedades industrializadas ou que se industrializavam, como foi o caso do Brasil.(voltar)

Estamos usando o verbo no condicional porque, embora o discurso das organizações internacionais seja esse, na prática nem sempre a competição se dá nesses termos.(voltar)

Cabe lembrar que se esse tipo de estruturação não é válido para todos os processos produtivos, não se aplicando em geral para a indústria de processo; ele se encontra, todavia, bastante difundido na indústria de produção discreta.(voltar)

Estamos utilizando o termo precarização para designar a difusão do emprego de má qualidade, exercido em geral em pequenos estabelecimentos, sem registro ou com contratos por tempo determinado ou de tempo parcial.(voltar)

 
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Atualizado em 10/05/2004
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