Reportagens






 

Ensino Superior Brasileiro: Expansão e Desafios

Cibele Yahn de Andrade

As mudanças no mundo do trabalho têm intensificado a demanda por educação superior. No Brasil, o sistema de ensino superior, que foi predominantemente público até a década de 70, teve seu perfil radicalmente modificado após esse período, com a predominância progressiva das matrículas no setor privado. A Figura 1 mostra como o percentual de matrículas no setor privado superou aquelas no setor público a partir de 1970.


Figura 1

Na década de 70, paralelamente a um crescimento limitado do setor público, há um primeiro ciclo de expansão ocorrido no âmbito do ensino privado. Tal crescimento introduziu uma diferenciação e hierarquização entre os estabelecimentos. Às antigas universidades privadas de natureza confessional ou não-lucrativa, somaram-se, em maior número, as instituições criadas pela iniciativa empresarial. Passam a predominar pequenas instituições isoladas dedicadas exclusivamente ao ensino para atendimento da demanda e cujos padrões de qualidade eram bastante heterogêneos. Assiste-se também, a partir da década de 80, apesar da desaceleração do crescimento nesse período, à transformação de instituições isoladas em universidades, até então prerrogativa limitada às instituições públicas e algumas de natureza confessional.

Nos anos 90 o ensino superior privado voltou a crescer intensamente. Prossegue o movimento de transformação de instituições isoladas privadas em universidades, bem como o seu crescimento físico. Ademais a multiplicação dos campi e a diversificação dos cursos empreendida por parte de universidades recentemente criadas são tendências características daquela década (Fapesp, 2001). Esses fenômenos ocorreram primeiramente e de forma mais intensa no estado de São Paulo, e depois nas demais regiões do país. Como podemos observar na Figura 2, a mesma tendência, de crescimento do setor privado, vai ocorrendo nas demais regiões, embora com intensidades e patamares diferentes. Na Região Sudeste excluindo-se o Estado de São Paulo, o setor privado passa de 64% em relação ao total da matrícula, em 1995, para 76% em 2002; na região Sul de 51% para 74%%; nas regiões Nordeste e Norte de 32% e 28% para 42% e 40% respectivamente. No Estado de São Paulo a variação no mesmo período foi de 80% para 84%.

Distribuição das matrículas entre o ensino superior privado e
público nas 5 regiões brasileiras e no Brasil, em 1989 e em 2002.

Figura 2
Fonte: SEEC/MEC

No entando, o aumento da oferta de vagas pela iniciativa privada não foi acompanhado por proporcional aumento da demanda. A relação candidato/vaga, no setor particular, cai de 2,9 em 1995 para 1,6 em 2002. O percentual de vagas não preenchidas, nestas instituições, que era de 20% nos anos 90, salta para 37%, em 2002. Paralelamente assistimos ao crescimento da inadimplência e da evasão.

A estrutura altamente desigual da sociedade brasileira resultante da intensa concentração de riqueza e renda constitui um limite natural à expansão do setor do ensino superior por meio da iniciativa privada.

Quando observamos a população de 18 a 24 anos que cursa ensino superior segundo as faixas de renda (renda familiar per capita em salários mínimos) podemos observar que as proporções de alunos aumentam conforme crescem as faixas de renda. Nas faixas acima de três salários mínimos a proporção de estudantes é superior a 30% (Figura 3). Este é o percentual que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação estabelece como meta a ser atingida para a população como um todo e é uma taxa de escolarização superior comparável àquela de países europeus.


Figura 3
Fonte: PNAD/IBGE

Isso significa que, por um lado, quando observamos a parcela da população de maior renda temos um indicador que se aproxima àquele de países desenvolvidos: mais de 30% de jovens no ensino superior. Por outro, são muito reduzidos os percentuais de participação no ensino superior quando observamos as faixas de renda mais baixas.

No total da população o país está longe de atingir a meta estabelecida pela LDB porque o aumento da participação no ensino superior esbarra no limite de renda da população brasileira, onde 86% da população brasileira aufere menos de três salários mínimos familiar per capita. Esses indicadores sugerem uma importante restrição à expansão do setor via iniciativa privada. Os dados da PNAD/IBGE e do Exame Nacional de Cursos demonstram que no ensino superior a porcentagem de estudantes de camadas mais pobres é maior no ensino superior público do que no ensino superior privado. Dificilmente será possível, democratizar a oferta, aumentando a participação dos jovens incluídos nas faixas de renda mais baixas na ausência da expansão do ensino público e gratuito e de uma vigorosa retomada do crescimento econômico, do emprego e da renda.

Outro fator importante de diferenciação entre o ensino superior público e o privado é o conjunto das áreas de conhecimento nas quais os cursos são oferecidos. As instituições privadas oferecem principalmente cursos em áreas de humanas ou de formação geral. Desta forma, devido a preponderância quantitativa do setor privado, o resultado é que mais de 60% dos alunos no Brasil se formam em apenas duas áreas: Ciências Sociais/Negócios/Direito e Educação. A seguir, a área de Saúde e Bem Estar Social apresenta um percentual de formados bem inferior, em torno de, 13%. As áreas de Ciências/Matemática/Computação e Engenharia vêm em 3º lugar, apresentando percentuais inferiores a 10% dos concluintes (Figura 4).


Figura 4
Fonte: SEEC/MEC

As estaduais paulistas e a rede federal em seu conjunto apresentam uma oferta mais equilibrada entre as áreas de conhecimento, conforme podemos observar na Figura 5. O restante da rede estadual, longe de apresentar esse equilibrio, concentra mais da metade de seus formandos em apenas uma área (54,5% em educação), percentual ainda mais alto do que o apresentado pelas particulares.


Figura 5
Fonte: SEEC/MEC

A comparação com países da OCDE mostra que a proporção de concluintes segundo as áreas de estudo é variável (Figura 6). Na Coréia, por exemplo, as áreas de Ciências e Engenharia atingem 40% dos concluintes; nos USA as proporções são mais próximas às do Brasil, mas o número de concluintes em relação à população é muito maior (cerca de 80% da população entre 18 a 24 anos). Observamos portanto que é necessário levar em conta não só a proporção entre as áreas, mas também o percentual de formandos em relação à população total de cada país. Enquanto nos EUA, com uma distribuição semelhante de concluintes segundo as áreas de estudo, graduam-se anualmente 0,22 engenheiros por mil habitantes, o Brasil gradua 0,08 engenheiros por mil habitantes. A França e a Inglaterra formam 0,33 engenheiros por mil habitantes e, finalmente a Coréia 0,8 engenheiros por mil habitantes.


Figura 6
Fonte: SEEC/MEC

Os dados apresentados mostram que o ensino superior no Brasil, apesar do intenso crescimento ocorrido, está atendendo um percentual pequeno da população e de forma muito concentrada em poucas áreas. O sistema de ensino superior no Brasil é composto por uma complexa combinação de segmentos públicos e privados, cada um com características próprias e heterogeneidades internas. A compreensão da natureza e da dinâmica das instituições de ensino superior exige não perder de vista a dimensão histórica e regional de cada um dos segmentos, para melhor compreender sua realidade e potencial.

O Brasil não vai conseguir, se permanecerem as atuais tendências, aumentar substancialmente a abrangência e a equidade do acesso ao ensino superior. O crescimento via setor privado encontra importantes restrições em sociedades extremamente desiguais como a nossa. A expansão do ensino superior brasileiro requer uma estratégia fundada no crescimento do setor público com ensino gratuito e de qualidade. Isto não implica necessariamente que o aumento da oferta pública precise ser, toda ela, nos moldes da Universidade de Ensino e Pesquisa. A concepção mais atual inclui em alternativas de educação pós-secundária. Nesse sentido, as redes estadual e federal de Faculdades de Tecnologia são exemplos, embora com redes pequenas, muito promissores. Países mais ricos do que o Brasil tem um sistema de ensino superior composto por uma variedade de modelos acadêmicos para suas instituições.

A estratégia para que o ensino superior contemple a diversidade de expectativas individuais de formação profissional e do mercado de trabalho deveria ser a maior diversificação institucional e curricular. Esta diversificação institucional e acadêmica acrescenta a possibilidade de um acompanhamento mais flexível das constantes mudanças no mundo do trabalho.

Cibele Yahn de Andrade (cibele "arroba" nepp "ponto" unicamp "ponto" br) é pesquisadora do NEPP/Unicamp, doutoranda do Instituto de Economia da Unicamp.


Observações

Gráfico extraído de Carvalho, Cristina Helena Almeida de. "Reforma universitária e os mecanismos de incentivo à expansão do ensino superior privado no Brasil" (1964-1984). 2002. Dissertação (Mestrado em Economia ) - Instituto de Economia , Universidade Estadual de Campinas). Atualizado para 1985 a 2002, pela autora deste artigo, a partir dos dados da Sinopse do Ensino Superior, INEP/MEC. (voltar)

Parte dos dados apresentados neste artigo originaram-se do trabalho de pesquisa para a publicação: Indicadores de Ciência, Tecnologia e Inovação em São Paulo - Fapesp. Porém a análise aqui apresentada é de inteira responsabilidade do autor deste artigo. (voltar)

Em 1968 o estado contava com 85.268 alunos matriculados nos cursos de graduação, dos quais 63% em escolas particulares (Pastore, 1973). Em 1980, as matrículas já atingiam 449.556, dos quais 367.066 (81,6%) em instituições privadas (IBGE, 1983). Ver Fapesp, 2001 pg 3.6. (voltar)

Dados extraídos da pesquisa, em andamento: "Perfil do aluno do ensino superior no Brasil", sob a responsabilidade de Andrade, Cibele Yahn e Telles, Stella Barberá da Silva. NEPP/Unicamp. (voltar)

Limongi, Fernado; Sampaio, Helena e Torres, Haroldo. Equidade e Heterogeneidade no Ensino Supeiror Brasileiro. Brasília-DF-Inep, 2000. (voltar)

É preciso, no entanto, levar em conta a heterogeneidade de porte e qualidade das instituições federais que variam em porte e qualidade. Por exemplo, enquanto as federais do Rio de Janeiro (UFRJ), Minas Gerais (UFMG), Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasília (UNB) e Santa Catarina (UFSC) apresentam uma proporção de mais de 50% de professores doutores, outras federais, tais como, as do estado de Amapá, Amazonas, Rondônia, Acre e Roraima possuem menos de 10% de professores doutores (Dados e Indicadores das Instituições Federais de Ensino Superior, 2.000, Brasília, DF, novembro de 2002). (voltar)

Podemos observar também que, segundo os conceitos obtidos através do Exame Nacional de Cursos, o percentual de cursos com notas D e E nas instituições estaduais (exceto as estaduais paulistas) é de 37% dos cursos, percentual maior do que aquele observado entras as instituições particulares (33% dos cursos). Entre as instituições federais é de 16% e nas universidades estaduais paulistas é de 19% dos cursos. (voltar)

Vale destacar os limites interpretativos da comparação entre países devido à diversidade dos sistemas de ensino superior e as diferenças no modelo de desenvolvimento. (voltar)

Ver Indicadores de Ciência e Tecnologia, 1995, MCT. (voltar)

A experiência de outros países ilustra a ampla gama de possibilidades, desenvolvidas em função da história e das necessidades de cada nação. Nos Estados Unidos, por exemplo, 60% dos estudantes matriculados no ensino superior freqüentam cursos com duração de quatro ou mais anos em instituições que se assemelham às nossas universidades públicas. Os outros 40% são matriculados em Community Colleges, com cursos de dois anos de duração. Em países da OCDE também se observa uma grande diversidade quanto à natureza dos cursos superiores. Há cursos de natureza técnica ou profissionalizante, em geral, cursos de dois a três anos. E há cursos de natureza mais avançada, em geral, com duração superior a quatro anos. (voltar)

 

 
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Atualizado em 10/05/2004
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