Reportagens






 

Classificação Brasileira de Ocupações 2002:
Porquê? Para quê?

Liliana Rolfsen Petrilli Segnini

Por quê classificar ocupações no Brasil? Por quê atualizar descrições anteriores, realizando a CBO 2002? Conhecer, sistematizar, classificar o mercado de trabalho de um país significa elaborar parâmetros que informam relações econômicas, políticas e sociais. Trata-se de uma das políticas públicas elaboradas pelo Estado, desde 1971, no processo de consolidação do mercado de trabalho urbano e industrial no país. A CBO 2002 capta as mudanças ocorridas na última década e re-elabora os parâmetros referidos. Compreender sua importância e especificidades requer algumas considerações históricas.

A expansão do processo de industrialização, no Brasil, é intensificada a partir dos anos 30; no período compreendido entre as décadas de 1930 a 1980 observa-se a consolidação do mercado de trabalho urbano nacional. Nesse período, o Estado procurou adequar políticas públicas às exigências do processo de implantação da indústria, elaborando diretrizes, legislando, atuando no sentido de promover condições políticas e econômicas. A implantação da indústria de base (siderurgia, metalurgia, energia, etc...) foi assumida pelo Estado, ao mesmo tempo em que assegurava proteção ao trabalhador, como garantia da ordem social.

Entre 1940 e 1980, 35 milhões de trabalhadores migraram do campo para a cidade, já vinculados à perspectiva de empregos formais, normalizados pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), promulgada em 1o. de maio de 1943, ainda em vigor em 2004. Alguns dados sintetizam a importância dessa conjuntura: em 1940, de cada dez trabalhadores assalariados, três eram registrados; em 1980, considerando também dez trabalhadores, sete tinham registro formal de trabalho, representado pela Carteira do Trabalho (Pochmann, 1998).

O Estado definiu, com a CLT, a Justiça do Trabalho, o papel dos sindicatos e suas possibilidades de ação política, o sistema de Previdência Social. O salário mínimo (Decreto-Lei no. 2.162; 1o. de maio de 1940), e as políticas de formação profissional, sempre sob o controle do Estado, também foram somadas às políticas apontadas. A formação de trabalhadores especializados se deu com a criação de escolas técnicas públicas e privadas, nas quais se formavam os quadros de níveis médios nas empresas. A formação de operários foi atribuída, sobretudo, ao Sistema S (Senai, Sesi, Senac, Sesc e Sebrae), organizado por diferentes instituições patronais. (Barbosa e Moretto, 1998)

No entanto, é preciso registrar que estas políticas se inscrevem em um contexto marcado pelo processo de regulação com forte presença do Estado, dois longos períodos de ditadura - Getúlio Vargas e período militar -, e crescimento e fortalecimento da ação sindical, redundando em crescimento econômico (7% ao ano entre 1945 e 1980), mas não em distribuição de renda (id.ibid.). O período freqüentemente denominado "milagre brasileiro", observado na ditadura militar a partir de 1964, significou uma diminuição da participação dos 20% da população considerada mais pobre na renda nacional (de 3,9% para 2,8%), enquanto os 10% mais ricos a ampliavam (de 39,6% para 50,9%). Esses dados referem-se ao período 1960 a 1980 (id.ibid.). A consolidação do mercado de trabalho brasileiro foi marcada pelo crescimento econômico e pela desigualdade social.

A criação do Sistema Nacional de Emprego, em 1975, se inscreve nas políticas do II Plano Nacional de Desenvolvimento, implantado a partir de 1975, e nas solicitações da Convenção 88 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que informa a criação de sistemas públicos de emprego. O Cadastro Brasileiro de Ocupações, em 1971, fornece subsídios necessários para o cumprimento das determinações que redundaram tanto no II PND como na convenção da OIT citada. Metodologicamente, tomou por base registros referentes a planos de cargos e salários enviados pelas empresas brasileiras ao Ministério do Trabalho, redundando na descrição de 522 ocupações, de diversos setores econômicos. Posteriormente, em 1972, dá-se início ao processo de descrição em âmbito nacional, coordenado também pelo Ministério do Trabalho, disponibilizado em sua primeira versão final em 1977.

A metodologia empregada nesta segunda classificação baseia-se na observação e registro do que fazem e como fazem trabalhadores e profissionais, em seus locais de trabalho, na concretização de seus trabalhos. Para tanto, foi mobilizado um grupo de pessoas, de diferentes formações, selecionadas pelo Ministério do Trabalho, que atuaram junto às Delegacias Regionais do Trabalho, as quais possibilitaram o acesso a empresas, processos e postos de trabalho.

Desde a primeira classificação de ocupações no Brasil, observa-se a importância e estreita relação com a OIT, no sentido de atender solicitações formuladas por esta instituição aos seus países membros. A CIUO (Classificação Internacional Uniforme de Ocupações), elaborada pela própria OIT em 1958, foi considerada como referência na construção das classificações que informam o mercado de trabalho, em diferentes países, entre eles o Brasil.

A CBO 1977 não representou a mobilização política de trabalhadores, sindicatos ou centrais sindicais; bem como não foi utilizada como parâmetro para elaboração de políticas de formação profissional ou mesmo currículos, também não estruturou carreiras e salários, tal como pode ser observado em outros países, como a França, por exemplo. No entanto, foi um instrumento relevante para a elaboração dos registros e dados estatísticos nacionais referentes ao mercado de trabalho.

Importância da CBO 2002
O processo de elaboração da CBO 2002 se inscreve em outro contexto da história do mercado de trabalho no Brasil; no qual, no plano político, é salientado o fim do período militar, em 1985, possibilitando a promulgação da Constituição de 1988, estendendo os direitos sociais no Brasil. Nesse sentido, se em alguns aspectos permanecem especificidades históricas que vinculam a nova CBO às condições de elaboração da CBO de 1977, outras dimensões revelam que o atual processo significou uma conquista social, sobretudo por razões metodológicas.

As mudanças que ocorreram no mercado de trabalho desde os anos 80, intensificados nos anos 90, decorrem de novas formas de regulação econômica, com implicações políticas e sociais. O crescimento do desemprego, do trabalho informal, foi uma constante desde o início da década de 1990 até o presente. Crescimento econômico restrito da economia nacional; crescimento da produtividade (em alguns setores como o bancário, por exemplo) vinculado à supressão de postos de trabalho e políticas de sub-contratação, terceirização, caracterizam, entre outros aspectos, as mudanças no mercado de trabalho brasileiro. As mulheres, nesse sentido, apesar do crescimento da participação no mercado de trabalho, são as trabalhadoras mais atingidas no processo. Nesse período, o desemprego atinge os maiores índices da história econômica e social no Brasil.

No entanto, para os trabalhadores que permanecem empregados ou procuram trabalho ou emprego, é reafirmado nos discursos patronais e sindicais, a necessidade de novas qualificações, expressa nas políticas de formação profissional. As políticas públicas de emprego, mesmo que de forma restrita e insuficiente frente à magnitude do problema, objetivaram o acesso ao trabalho para aqueles que se desempregam, se re-qualificam ou entram, pela primeira vez, no mercado de trabalho. Há muito ainda a ser concretizado neste sentido, mas um dos instrumentos pensados para tanto é a CBO 2002.

As classificações de ocupações são compreendidas como formas de representar uma sociedade ou um país, considerando que em sua elaboração são considerados parâmetros tecnológicos e sociais, tais como formação profissional, qualificação, representação sindical, relações e organização do trabalho, em suas diferentes etapas e processos. Nessa perspectiva foi implementada a CBO2002.

Para tanto, convidados pelo Ministério do Trabalho, por meio de instituições conveniadas (Senai; Fipe-USP; Cedeplar - UFMG; Funcamp-UNICAMP) foi intensa a participação de trabalhadores, empresas, instituições representantes dos trabalhadores e profissionais, empresas de todos os setores da economia, instituições como escolas públicas e privadas, de formação profissional. Dessa forma, participaram tanto das pesquisas que antecederam à formação de comitês de descrição, fornecendo-lhes subsídios, como no próprio processo descritivo. Traduzindo em número, descrever 600 ocupações no Brasil, representou a participação de 7 mil trabalhadores, assalariados ou autônomos, denominados especialistas (trabalhadores e profissionais), 3 mil empresas, mil sindicatos e outras entidades de classe.

Essa intensiva participação dos sujeitos que compõem o mercado de trabalho brasileiro decorre da metodologia empregada, denominada Dacum (Develloping Curriculum), uma abordagem de análise ocupacional que parte do princípio que só quem faz o trabalho pode descrevê-lo.

A realização da descrição das atividades e sub-atividades referentes a 2.422 ocupações, entendidas como sinônimos de profissões, aglutinou em 596 grupos, freqüentemente denominadas "famílias ocupacionais", segundo critérios que consideram diferentes aspectos no exercício da profissão ou realização do trabalho. Para tanto, foram realizadas as seguintes etapas na concretização deste trabalho, no período 2001 e 2002:

I - Pesquisa: foram levantados os dados referentes ao grupo ocupacional ocupado considerando dados estatísticos disponíveis (IBGE, Rais/CAGED, Seade/Dieese), informações sobre a história das ocupações participantes, instituições que as representam, processos de formação profissional, aspectos sobre a organização do trabalho, com o objetivo de selecionar, em cada grupo, em torno de 12 trabalhadores representativos de sua categoria, com no mínimo 5 anos de experiência profissional. Essa etapa de pesquisa possibilitou um significativo volume de dados sobre cada ocupação, a serem sistematizados em publicações específicas.

II - Comitê de Descrição: estes comitês foram compostos (em média) por 12 trabalhadores e profissionais (denominados especialistas), representando a heterogeneidade regional do país, incorporando diferenças de sexo e raça presentes no mercado de trabalho. Reunidos em um local específico para tanto (sobretudo em hotéis e nas universidades), durante dois dias inteiros, elaboraram o conjunto das grandes atividades e sub-atividades que realizam, trazendo para a discussão questões políticas referentes à trajetória histórica das ocupações descritas, polêmicas, conquistas sociais, mudanças tecnológicas, formação profissional e, sobretudo, a heterogeneidade referente às formas de concretização do trabalho. Relevantes discussões foram sintetizadas em um mapa descritivo (chart), que expressam enunciados mas não a relevância do conhecimento adquirido pelas equipes neste processo. Trata-se de mais um trabalho de análise a ser ainda publicado posteriormente.

III - Comitê de Validação: o relatório referente à etapa de descrição foi enviado ao Ministério do Trabalho, que retornava aos facilitadores após análise que redundavam em indagações a serem elaboradas para o comitê de validação composto por membros do comitê anterior (em torno de quatro), representantes de sindicatos de trabalhadores e patronais, de instituições de ensino e formação profissional, totalizando, em média, dez especialistas. O objetivo foi o de aprimorar a primeira descrição realizada.

Ao todo, três dias foram dedicados ao processo descritivo de cada grupo ocupacional enfocado, subdivididos em dois dias de descrição e um dia de validação.

Pelas razões expostas torna-se legítimo considerar que a CBO 2002 representa um dos mais abrangentes processos de coleta de dados sobre o mercado de trabalho no Brasil, tendo considerado, como ponto de partida, a última classificação proposta pela OIT - a CIUO88. Demanda, no entanto, constantes atualizações e análises frente à própria dinâmica do mercado de trabalho e representa fértil campo de pesquisas acadêmicas para pesquisadores da área.


Liliana Rolfsen Petrilli Segnini é Profa. Titular da Faculdade de Educação - UNICAMP
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Atualizado em 10/05/2004
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