Morte na era digital: como empresas de tecnologia dão novos sentidos ao luto

Por Bárbara Paro, Greta Garcia e Luís Botaro

“A atitude de anunciar uma morte tende a se reinventar na era da internet”. Era isso o que já previa a psicóloga Ana Luiza Mano, do Núcleo de Pesquisas em Psicologia em Informática (NPPI) da PUC-SP, em uma entrevista dada ao Valor Econômico em 2013. Nove anos de avanços tecnológicos depois, sua afirmação se mostra mais atual do que nunca. Hoje as tecnologias emergentes funcionam como plataformas para a readaptação de diversos rituais e práticas do luto, além de incentivarem a criação de novas maneiras de vivenciar esse processo ou de se planejar para a própria morte.

QR codes pregados às lápides que levam a páginas com informações sobre a pessoa ali enterrada; memoriais on-line que recebem depoimentos e homenagens para marcar os feitos em vida de um indivíduo; perfis de redes sociais que se tornam um mural para recados pós-morte. No ambiente digital, identidades se mantêm fiéis aos indivíduos através das representações em vídeos, áudios, fotos e textos. E a interatividade é onde essas identidades são reconhecidas a partir da visibilidade dos outros. Apesar de ser um espaço de complementação aos rituais de passagem, essas inovações também levantam questionamentos que respingam nas áreas dos direitos civis e da privacidade dos dados on-line.

“Alguns autores que sugerem que a nossa ciência da morte, da nossa ou da morte em si, é o que nos fez desenvolver a nossa consciência como um todo”, afirma Lidia Zuin, jornalista, mestre em semiótica, doutora em artes visuais e pesquisadora do Núcleo de Inovação e Futurismo da UP Lab. De acordo com alguns antropólogos e historiadores, como Edgar Morin e Hans Belting, esse é um sentimento exclusivo do ser humano. “O gato se afasta quando está morrendo porque percebe que está mal, mas não sabe necessariamente o que está acontecendo com ele. Tem espécies de macacos que sofrem a questão do luto. Mas não tem um momento da vida em que um animal vê o outro morrer e entende: ‘Ah isso também um dia vai acontecer comigo’”, explica Zuin.

Na dicotomia vida e morte, a segunda é valorada negativamente de maneira muito mais intensa, mas nem sempre foi assim. Por muito tempo a ideia de morte foi bastante natural e compreendida como parte de um ciclo. A partir da Revolução Científica e do Iluminismo, o corpo passou a ser visto como algo manipulável, cujo funcionamento poderia ser melhorado para evitar doenças, o que tornava a vida mais extensa e a morte evitável. Dessa forma, o tema passou a ser relegado às instituições de saúde e ciência, tornando-se um tabu nas conversas do dia-a-dia.

“O que acontece hoje em dia é que, como a gente acredita cada vez mais que a ciência e tecnologia conseguem resolver absolutamente tudo, então a última fronteira [a ser superada] seria a morte. Transformar o que é ser humano, acabar com a morte ou estender nossa vida radicalmente”, explica Zuin.

Vida digital pós-morte: realidade e ficção científica

Em sua tese de doutorado Homo Imago: Imagem como sobrevivência e segundo corpo, Zuin argumenta que as criações humanas, como a tecnologia, a pesquisa, a ciência, a cultura, são respostas à consciência da morte, como uma tentativa de produzir sentido para a existência. “A morte é um vetor, uma inspiração para criar cultura e para criar significado para todas as coisas, porque em última instância a vida não faz sentido nenhum”, afirma.

De acordo com Milena Albuquerque, comunicóloga e pesquisadora de pós-doutorado na Universidade da Beira Interior, em Portugal, os avanços tecnológicos impactaram os ritos de passagem de maneira complementar. “Percebe-se que toda essa mudança não aconteceu somente na maneira de se comunicar, de interagir, compartilhar e se relacionar, mas de como ver e lidar com situações diversas, principalmente ao encarar as aflições e o medo diante da morte” pontua.

E o mercado, como esperado, já se adaptou a essa nova realidade. As empresas que se debruçam sobre essas inovações ganharam o nome de death techs e oferecem serviços que vão do simples ao bastante sofisticado. Elas desenvolvem tecnologias tanto para quem quer estar preparado para a derradeira hora quanto para familiares e amigos que querem manifestar seus sentimentos antes de se despedir de quem morreu – ou eternizá-los.

No Brasil, por exemplo, o serviço funerário Morada da Paz oferece o portal Morada da Memória, que permite a criação de um mural on-line em homenagem à pessoa falecida. Nesse mural, família e conhecidos podem contribuir com memórias fotográficas, mensagens e, inclusive, acender velas virtuais. Outra startup do setor é a Misyu, que além de oferecer o registro de vídeos, fotos e textos em “cápsulas do tempo”, vai além do habitual e permite programar envios de pedidos de desculpas ou mensagens que expressam saudades por alguém, além de oferecer o registro de testamentos e de listas de últimos desejos.

E há também startups focadas em serviços mais específicos. Esse é o caso da Guardadoria, empresa que armazena memórias cedidas por um contratante que planeja sua hora da despedida. Quando algo acontece, seja uma hospitalização ou a eventual morte, um guardião nomeado previamente pelo contratante do serviço pode solicitar a liberação dessas memórias, armazenadas em formato de áudio, vídeo ou fotos, para descobrir o que foi registrado.

Além das death techs, as redes sociais também têm exercido um papel de destaque no processo de luto. Isso porque, durante a atividade de seus usuários, elas acumulam registros, formando um acervo de momentos espontâneos que pode ser revisitado depois. O Facebook, por exemplo, mudou a política de privacidade dos perfis de pessoas que já faleceram com o intuito de preservar os conteúdos publicados antes de sua morte. A partir desta mudança, quando alguém morre, seu perfil na rede social se torna um memorial on-line, e os conteúdos publicados pela pessoa ficam “imortalizados” neste ambiente virtual para acesso de conhecidos, sem sofrer a interferência da plataforma.

Para Albuquerque, além de permitir a participação daqueles que estão fisicamente distantes do lugar onde os ritos de passagem presenciais acontecem, há também outras necessidades que o digital pode atender. “Em entrevista com os usuários do Facebook e do Instagram [para a tese de doutorado], as pessoas sentiam a necessidade da despedida, de fazer homenagem e de manter a lembrança de seus entes queridos. O Facebook também se tornou um canal de comunicação que informava os amigos e familiares sobre a morte das pessoas, o que antigamente se fazia por telefone”, conta.

Por outro lado, a tentativa de se manter vivo e presente, superando a morte, também motiva a criação de tecnologias por parte de empresas como a Microsoft. Em 2021, a companhia registrou a patente de um chatbot que simula uma conversa em tempo real com alguém que já morreu.

No audiovisual, obras de ficção científica como as séries Black Mirror (Netflix) e Upload (Amazon Prime Video), já faziam o exercício de imaginar como seria um futuro próximo em que é possível substituir o corpo da pessoa falecida por máquinas, copiando sua personalidade ou até mesmo utilizando sua consciência. Elas traduzem a ideia do movimento transhumanista, que acredita que o uso da tecnologia e da ciência pode auxiliar na criação de seres humanos evoluídos, que superam os limites impostos pela natureza e podem até mesmo alcançar a imortalidade. (Leia mais sobre Transhumanismo no artigo “Os oráculos da pós-modernidade: Ficção científica, ciência e o futuro”, de Vitor Chiodi, publicado na revista ComCiência em julho de 2017).

“Tem pessoas trabalhando com criogenia, com a tentativa de traduzir o cérebro humano em código para então fazer o upload da mente [a um suporte digital]. Tem pessoas fazendo clones virtuais, que é um avatar como você ou um robô que poderia receber seu cérebro. Mas até que ponto você pode substituir seu corpo sem se transformar em outra pessoa? Isso também mexe muito com a noção de consciência, de indivíduo”, questiona Zuin. Ela cita também o historiador israelense Yuval Harari, que acredita que esse movimento em busca da imortalidade pela tecnologia tenta tornar realidade o que antes era apenas um atributo da fé. “O paraíso acaba se tornando não mais um desejo religioso, mas sim um objetivo a ser alcançado com desenvolvimento tecnológico e científico”, aponta a pesquisadora.

Herança digital

Enquanto alguns buscam alternativas para a imortalidade no ambiente digital, outros pretendem compreender suas implicações. Os mesmos dados presentes nas redes sociais que são ferramentas para a superação do luto e para possíveis extensões da vida propiciam questionamentos no âmbito jurídico.

Os vestígios digitais não são bens materiais que podem ser transmitidos como herança. ”Esses vestígios estão intrinsecamente conectado à personalidade do sujeito e aos seus interesses”, explica Rafael Zanatta, diretor da Data Privacy Brasil, uma associação de pesquisa sem fins lucrativos e suprapartidária. Segundo ele, quando a expressão “herança digital” foi adotada, englobava o conjunto de informações e dados de acesso a contas que foram produzidos pelos indivíduos durante sua vida online. Dentro dessa lógica, o acúmulo de dados que ficou para trás após o falecimento é visto como propriedade – o que pode não ser tão simples assim. O fato de essas informações serem parte da personalidade do sujeito pode complicar a discussão sobre a transmissão desses recursos e sobre que tipo de recursos são esses.

No Facebook, por exemplo, quando um usuário morre, outros perfis podem denunciar a conta, indicando o falecimento. Apenas assim, após acumular certa quantidade de denúncias, a plataforma pode “congelar” o perfil e torná-lo um memorial, onde outros usuários, como amigos e familiares, poderão deixar mensagens e prestar condolências.

Essa questão da transferência da posse dos dados de quem já morreu tem se tornado cada vez mais discutida no âmbito legal, e parece haver uma tendência para que as plataformas passem a discutir mais o assunto. Isso se deve ao fato de que, com o passar dos anos, veremos cada vez mais perfis de pessoas falecidas, principalmente nas redes sociais como o Facebook e Instagram, que já estão em uso no Brasil há mais de dez anos. Um estudo publicado no periódico Big Data & Society pelos pesquisadores Carl J. Öhman e David Watson, do Internet Institute da Universidade de Oxford, prevê que, antes de 2100, o Facebook pode ter mais usuários mortos do que usuários ativos. O estudo estima que haverá pelo menos 1,4 bilhão de perfis desse tipo, mas esse número pode chegar a 4,9 bilhões.

Outras empresas têm adotado políticas rigorosas quanto a isso, cessando definitivamente as contas de indivíduos cujo óbito tenha sido confirmado. A Apple é um exemplo: uma vez identificada a morte do usuário, sua conta é encerrada imediatamente. Essa remoção abrupta pode interferir no processo de luto daqueles que desejam manifestar e acompanhar as homenagens no perfil. Por esse motivo, estão sendo criados mecanismos de análise para compreender o interesse da família ou do “herdeiro” em ter acesso à conta.

Para quem opta pela remoção do perfil, também pode haver dificuldade. O Instagram, por exemplo, permite que usuários solicitem a exclusão de perfis de pessoas que faleceram, mas esse é um processo burocrático: a solicitação não pode ser feita por qualquer perfil, mas apenas por aqueles que comprovem ligação com quem morreu. Além disso, a análise desse pedido segue parâmetros internos da plataforma, que não são claros. Há, entretanto, uma alternativa a isso: a possibilidade de solicitar o delisting do perfil, um processo de remoção de uma página específica da listagem de resultados que aparecem em motores de busca. Desse modo, quando alguém procurar pelo seu nome em sites de busca como o Google, por exemplo, o conteúdo não aparecerá como resultado.

A transferência de dados pessoais para outras pessoas é uma discussão complexa, e deixa a desejar no quesito legislação. A própria Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) não fala, diretamente, sobre sua aplicação em relação aos dados pessoais de pessoas que morreram. Para Zanatta, essa é uma lei mais procedimental, enquanto essa discussão sobre a transferência de dados tange mais os direitos civis. “É tudo especulação, tanto em cima do código civil quanto em cima da LGPD. Até houve projetos de lei apresentados, mas nenhum aprovado”, afirma.

Bárbara Paro Giovani é formada em jornalismo (Unesp). Cursa especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)

Greta Garcia é formada em ciências sociais (Unicamp) e cursa especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)

Luís Antonio de Oliveira Botaro é formado em comunicação social – publicidade e propaganda (Unip) e em ciências sociais (Unicamp).