Objetivos de Desenvolvimento Sustentável: a que vida saudável e a qual bem estar nos levam?

Por Stephan Sperling

Não há ODS da ONU capaz de indicar vida saudável e bem estar para todos sem incorrer em contradição diante da forma como a economia política capitalista está estruturada. O cenário internacional acumula notícias sombrias a respeito do futuro do direito à saúde, como o desfecho da Conferência Global sobre Atenção Primária à Saúde (2018). Abandonando os marcos da universalidade do acesso ao cuidado e da fundamentação dos Sistemas de Saúde no direito à saúde, a Declaração de Astana rende-se ao capital financeirizado defendendo o aprofundamento da segmentação do acesso entre consumidores do setor privado e usuários do sistema público.

Objetivo 3. Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades

A oferta de assistência à saúde individual e a ordenação de dispositivos sanitários para atenção populacional, como considera Maria Cecília Donnagelo1, são anteriores à estruturação da sociedade de classes. Assim, não tanto a diferenciação, antes a extensão dessas práticas de cuidado nas sociedades capitalistas revelam a maior ou menor subsunção das agendas da saúde pela agenda macroeconômica, o que quer dizer, obviamente, o quanto os Sistemas Nacionais de Saúde e as políticas públicas sanitárias emprestam legitimidade às sequentes formas do capitalismo, não sendo diferente com a crescente financeirização do cenário mundial.

Deve causar estranhamento iniciar-se uma crítica aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável para a saúde com uma crítica aguda à economia política global. Por muito tempo, saúde e práticas em saúde foram consideradas como “atividades específicas, de caráter científico e imediata função social – aplicar-se cientificamente ao objetivo da cura”1, isto é, como um conjunto/universo impenetrável e inconspurcável pela atividade política humana. Entretanto, desde que o pensamento para o cuidado da vida humana começou a estabelecer-se, mais e mais a agenda da saúde consolida-se como uma agenda filosófico-política para além de uma agenda médico-científica. Giorgio Agamben2 registra cristalinamente a baixa densidade de formulações, desde o Corpus Hippocraticum à Política de Aristóteles, para zoè, isto é, vida humana como fenômeno biológico, comparativamente ao destaque que bios, a vida humana politicamente qualificada, sempre obteve. Uma agenda para saúde será sempre uma agenda histórica de ações que, em seu conjunto, dizem respeito à arte de intervir no curso da vida humana, por serem, eminentemente, agendas biopolíticas.

Impossível, portanto, considerar que em cenário de crise, onde a adoção da via austeritárita por diversos Estados Nacionais, que propagandeiam “contenção de despesas, redução de déficit ou de ajustamento entre o que se produz e o que se gasta”3, como única resposta possível à falência do capital, levando ao enfraquecimento das instituições democráticas e à pauperização do expropriação de cidadãos, possam medrar direitos sexuais e reprodutivos às mulheres, universalização do acesso à assistência ou incremento de financiamento à saúde, sem que, essencialmente, o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável preponderante seja sustentar e aprofundar regimes democráticos com ampla participação popular, promovendo bios, uma vida marcada pelo exercício político, indicador quase ancestral da higidez do ser humano, animal político.

Superar o autoritarismo financeiro e a dissolução da via democrática produzindo mais saúde para os povos só será possível caso os Estados Nacionais e a comunidade humana reassumam firmemente a defesa da saúde como direito humano fundamental, por isso mesmo, inalienável e indispensável para o respeito à dignidade humana4. O cenário internacional, contudo, acumula notícias sombrias a respeito do futuro do direito à saúde, como o desfecho da Conferência Global sobre Atenção Primária à Saúde, ocorrida em 2018, materializa. Abandonando os marcos da universalidade do acesso ao cuidado e da fundamentação dos Sistemas de Saúde no direito à saúde, a Declaração de Astana rende-se ao capital financeirizado, defendendo estratégias de focalização de ações em saúde, aprofundamento da segmentação do acesso entre consumidores do setor privado e usuários do sistema público e, sobretudo, indicando o gerenciamento do cuidado – estratégia histórica do capital para controlar ações sanitárias e restringir investimentos – como alternativa para a crise de financiamento5.

É preciso tensionar e esgotar, portanto, o que se pretende com vida saudável e bem estar para todos, diante de um cenário dominado pela governamentalidade, isto é, pela arte de governar neoliberal, a qual “deve responder essencialmente à seguinte questão: como introduzir a economia – a maneira de gerir corretamente os indivíduos, os bens, as riquezas no interior da família – no nível da gestão de um Estado?”6 Justamente por esse dispositivo de governança econômica – oikonomikoi, conjunto funcional de instrumentos para administração da casa – é impossível tornar absolutos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável na perspectiva de melhora da qualidade da vida humana sem criticar e compreender como Governos e Estados Nacionais têm-se disposto para afetar cidadãs e cidadãos, mulheres e homens, nessa fábrica de produção de cuidado. Noutras palavras, não há Objetivo de Desenvolvimento Sustentável capaz de indicar vida saudável e bem estar para todos sem incorrer em contradição diante da forma como a economia política capitalista está estruturada e produzindo formas de governo.

Salubridade e bem estar, por assim dizer, podem estar a serviço tanto de formas aumentativas de potência ou de servidões diminutivas7, segundo o modo como se dispuserem os corpos humanos nas propostas de cuidado. Maria Cecília Donnangelo chama de “contradição fundamental da medicina” a oferta de assistência e cuidado como forma de governo de corpos que pode, antiteticamente, produzir desfechos negativos para a própria saúde. A subsunção de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável pela agenda servil neoliberal, desta forma, pode vir a reafirmar a “subordinação da medicina a modelos organizacionais e objetivos econômicos definidos ao nível da produção industrial, identificando os fenômenos de poder que se expressam na importância crescente assumida pela prática médica na tarefa de homogeneização cultural dos grupos sociais através de seus efeitos na ordem simbólica, e de sua subordinação a objetivos econômicos na esfera do consumo”1.

Exemplo claro é a própria conjuntura sanitária brasileira. O Sistema Único de Saúde, produto de lutas concretas e formulações ocorridas ao longo da resistência à Ditadura Militar e pela redemocratização do País, fora idealizado como um grande contrato social entre Estado e povo brasileiro, indicando a necessidade deste Estado em “assumir explicitamente uma política de saúde consequente e integrada às demais políticas econômicas e sociais, assegurando os meios que permitam efetivá-las”8. A expectativa, assim, era de que o Sistema de Saúde se comportasse como indutor de um processo civilizatório dilatado, para além de um conjunto de serviços e redes de assistência. O processo histórico, contudo, não é retilíneo e, nem sempre esse projeto apresentou acúmulo de força política e social suficiente para enfrentar os assaltos do capital. Segmentação de intervenções em saúde, sequestro financeiro do Sistema para financiamento do setor privado, restrição de investimentos em direitos sociais para amortização de funções financeiras do Estado, e, recentemente, enfrentamento de corporações de saúde que ensaiam extrapolar o domínio do mercado de saúde para incidir sobre outros setores econômicos, como o previdenciário, significaram importantes derrotas para o Sistema Único, mas, sobretudo, refringências no curso biopolítico que se pretendia.

A materialidade desse desgaste pode ser verificada analisando-se a transformação ocorrida na Política Nacional de Atenção Básica. Desde o golpe de Estado de 2016 até a eleição do governo Bolsonaro, a revisão do marco indutor do ordenamento e provisionamento de serviços e recursos humanos em Atenção Primária à Saúde no país pôs em xeque estratégias de vinculação e fortalecimento da Política nos territórios, a consolidação do cuidado multidisciplinar e a universalização do acesso a equipamentos públicos; defendendo uma carteira seletiva de intervenções sanitárias, algo como uma cesta básica de saúde, a liberalização do vínculo de profissionais em Equipes de Estratégia de Saúde da Família e a segmentação do acesso entre consumidores de seguros de saúde e usuários dependentes exclusivamente do Sistema Único9. É nítido o aprofundamento de uma governamentalidade neoliberal, em que interessa menos fortalecer o cuidado como promotor da bios humana, da vida comunitária plenificada pelo exercício político, preponderando intervenções seletivas sobre agravos biológicos e que possam diminuir o custo dos serviços praticados. Qual resistência real podem oferecer os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável diante desse cenário? Nenhuma. À parte o obscurantismo religioso e moralista do governo brasileiro, que certamente não permitirá a progressão de políticas em defesa do direito sexual e reprodutivo de mulheres, a Agenda 2030 pode, perfeitamente, ser subsumida pela governamentalidade neoliberal, como sepulcro repleto de dejetos civilizatórios em seu interior, mas caiado de vida saudável e de bem estar externamente.

Em 1979, o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, instituição histórica da Reforma Sanitária ainda em plena atividade, publicou documento que, por sua lucidez, tronou-se imarcescível. Em A questão democrática da saúde10, o Centro já indicava a urgência de “um debate democrático, o mais amplo e fértil possível, com todas as entidades e instituições interessadas na solução da crise atual da medicina brasileira. (…) Levando à formulação mais acabada de uma plataforma que agrupe e mobilize médicos e não médicos na luta contra a atual política de governo para a saúde e a favor de uma medicina democrática”. Apenas a articulação de todo o tecido social para a produção de Políticas de Saúde que fortaleçam e promovam a bios humana, produzindo outras formas de se governar a economia política poderá nos render um Desenvolvimento Sustentável, em que redução de mortalidade materno-infantil, promoção de direitos sexuais, financiamento de acesso a rotinas de prevenção e promoção poderão, de fato, ser empregados para oferta de uma vida saudável e de bem estar a todas e todos, como produto político comum.

Stephan Sperling é graduado em medicina pela Faculdade de Medicina do ABC (2013) e especialista em medicina de família e comunidade pela Faculdade de Medicina da USP (2017). É médico assistente e tutor do Programa de Residência em Medicina de Família e Comunidade e preceptor de ensino para a disciplina de Práticas Ambulatoriais do 3º ano de graduação da FM-USP (2017).

Referências

  1. Donnagelo, M.C.F.; Pereira, L. “Medicina na sociedade de classes”. In: Donnagelo, M.C.F; Pereira, L. Saúde e Sociedade. São Paulo: Duas Cidades, 1976. p. 29-33.
  2. Agamben, G. “A vida dividida”. In: O uso dos corpos [Homo sacer, IV, 2]. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 221-3.
  3. Hespanha, P. “As reformas dos sistemas de saúde na Europa do Sul: crises e alternativas”. In: Rodrigues, P.H.A.; Santos I.S.; (Org). Políticas e riscos sociais no Brasil e na Europa: convergências e divergências. 1 ed. Rio de Janeiro: Hucitec, 2017. p. 82-5.
  4. Fleury, S. Espanha: saúde é direito humano ou direito de cidadania?. Disponível em: https://cee.fiocruz.br/?q=Espanha-saude-e-direito-humano-ou-direito-de-cidadania. Acesso em: 08/6/2019.
  5. Giovanella, l.; Mendonça, M.H.M.; Buss, P.M.; Fleury, S.; Gadelha, C.A.G.; Galvão, L.A.C.; Santos, R.F. “De Alma-Ata a Astana. Atenção primária à saúde e sistemas universais de saúde: compromisso indissociável e direito humano fundamental”. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.35, n.3. Epub Mar 25, 2019.
  6. Foucault, M. “A governamentalidade”. In: Microfísica do poder. 2 ed. Rio de Janeiro | São Paulo: Paz e Terra, 2015. p. 413.
  7. Deleuze, G. “Espinosa e as três éticas”. In: Crítica e Clínica. Trad: Peter Pál Pelbart. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2011. p.179.
  8. 8ª Conferência Nacional de Saúde – Relatório final. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/8_conferencia_nacional_saude_relatorio_final.pdf. Acesso em: 08/6/2019.
  9. Sperling, S. “Política nacional de atenção básica: consolidação do modelo de cuidado ou conciliação com o mercado de saúde?” Saúde em debate. Set 2018.
  10. “A questão democrática na área da saúde”. Disponível em: http://cebes.org.br/site/wp-content/uploads/2015/10/Cebes_Sa%C3%BAde-e-Democracia.pdf. Acesso em: 08/6/2019.