A quem interessa manter populações inteiras de Arthur Flecks longe da psicanálise?

Por Vivian Whiteman

Nenhum filme recente foi tão abordado pelo viés da saúde mental quanto Coringa de Todd Phillips. Basta uma busca rápida para encontrar artigos, análises e críticas sobre a obra que rendeu o Oscar de Melhor Ator a Joaquin Phoenix. O interesse pelo roteiro nesse sentido não é difícil de explicar: lances dramáticos ligados aos processos de um Édipo de fato trágico, aparecimento de traços psicóticos, passagem ao ato com requintes específicos, ataques de riso tão incontroláveis quanto inconvenientes, um histórico pessoal de abusos que vai do núcleo familiar mais próximo à conjuntura social. Freud pode não explicar, no que faz muito bem, mas é possível usar alguns de seus conceitos e ideias fundamentais para fazer um tipo específico de questionamento sobre as sequências do filme. 

Muitos se aventuraram nesse caminho nos últimos meses. O pior dessas análises está, sem dúvida, naquelas que, como dizia Lacan, pretendem compreender rápido demais. Arthur Fleck foi um bebê rejeitado e abusado. Cresceu em um ambiente hostil, numa espiral de loucura compartilhada com sua mãe, humilhado pelos colegas, agredido sem motivos e desacreditado em seu único sonho: o de ser um palhaço chic, aplaudido e querido como seu ídolo, um comediante de TV. Nunca amado, nunca ouvido, nunca incluído. A tentação de concluir por “a + b” o que faz o Coringa triunfar sobre Arthur, a saber, seu calvário como excluído, é uma saída tão fácil quanto ruim.

Do ponto de vista da psicanálise, muita coisa pode ser dita sobre o filme, muita coisa mais interessante do que uma explicação simplificada, encastelada em um diagnóstico fechado, e do que um comentário vitimizante, caridoso ou moralista embrulhado em crítica social pra cinéfilo ver. Digo isso no sentido de não nos apressarmos a construir pontes sólidas ligando exclusão, distúrbio/síndrome, abuso, psicose e assassinato, por exemplo, em uma tentativa de amarrar os elementos do roteiro numa trajetória apoteótica. Por outro lado, tão ruim ou pior, seria ignorar a cidade, a desigualdade brutal da sociedade de Gotham City, as relações de poder e suas diversas implicações.

A redescoberta do potencial e do compromisso social da psicologia e da clínica psicanalítica passam, agora, por um momento importante. Livros como As clínicas públicas de Freud: Psicanálise e justiça social, de Elizabeth Ann Danto, e o desenvolvimento do conceito de humilhação social por José Moura Gonçalves Filho em seu trabalho no Instituto de Psicologia da USP e à frente do NETT (Núcleo de Estudos e Trabalhos Terapêuticos) [clique aqui para ler artigo de Gonçalves Filho neste dossiê] são muito significativos nesse contexto.

“A humilhação crônica, longamente sofrida pelos pobres e seus ancestrais, é efeito da desigualdade política, indica a exclusão recorrente de uma classe inteira de homens para fora do âmbito intersubjetivo da iniciativa e da palavra. Mas é também de dentro que, no humilhado, a humilhação vem atacar. A humilhação vale como uma modalidade de angústia e, nesta medida, assume internamente – como um impulso mórbido – o corpo, o gesto, a imaginação e a voz do humilhado.” A definição de Moura Gonçalves Filho sobre humilhação no âmbito da psicologia social é um bom guia de leitura nesse sentido. Esse trecho não descreveria bem, ao menos em uma primeira leitura, o riso que toma conta de Arthur em momentos de dor e desespero? Não seria esse um bom paralelo, uma analogia possível com uma humilhação que toma corpo, gesto e voz?

Ainda nessa linha, se Arthur está “fora” da palavra, de sua dimensão social, não pode ser ouvido. E de fato não o é. Numa das cenas mais comentadas do filme, ele declara essa falta de escuta à assistente social que faz as vezes de uma terapeuta mecanizada, repetidora de questionários e de conselhos pasteurizados estilo autoajuda de Instagram. Talvez ela também seja uma excluída da palavra, uma não-reconhecida. Trata-se de uma mulher negra que é chamada a lidar com os problemas dos Arthurs em uma escritório decadente cheio de formulários, do qual será também expulsa quando o governo decide encerrar o programa de atendimento, cortando as sessões e os remédios dele além do emprego dela. 

O atendimento de Arthur é tudo o que a psicanálise não deveria ser, ao menos segundo certo entendimento: um mecanismo de adaptação ao sistema. Lacan, e tantos outros com ele, vão condenar a clínica em que a cura ou o sucesso da análise se confundem ou coincidem com engajar o analisando no coro dos contentes. Em palavras ainda menos eruditas, a psicanálise não deveria se prestar a um tipo de manutenção adaptativa do sujeito, mesmo que ela seja muitas vezes chamada de felicidade.

Aqui, é claro, não se trata nem de longe de uma unanimidade. Mas a questão é tão grande, tão importante, que não deixa de ser espantoso que tantos profissionais construam carreiras inteiras sem lidar com ela.

É claro que no filme não se trata de um setting ou uma relação de análise de fato, mas sabemos que os pontos surdos e a relação catequisante muitas vezes a serviço do senso comum e da manutenção dos lugares de poder não são exclusivos dos cubículos da burocracia estatal. Eles também marcam presença em certos setores da academia, nas escolas de formação e às vezes até nos consultórios das “melhores” famílias. O que explica, ao menos em parte, o barulho causado pela senhora Danto com seu livro sobre Freud e as clínicas públicas, que tira o criador da psicanálise da cadeira do neutro-apolítico e resgata seus pensamentos, falas e experiências práticas com democratização do acesso, patologia social, atendimento gratuito e outros assuntos que ainda causam arrepios em muitos ambientes.

Os detratores de Freud tentam anualmente jogar a pá de cal definitiva sobre a psicanálise. Os melhores nesse esporte trouxeram questões importantes e pertinentes sobre elitismo, disciplina burguesa e sobre o lugar de sua teoria na ciência, abrindo caminho para grandes diálogos. Os piores fazem a linha do sensacionalismo apocalíptico e conseguem suas páginas de jornal e manchetes digitais, que em algum momento acabam servindo para embrulhar peixes virtuais. Tanto eles quanto aqueles que optaram pela canonização de Freud – decididos a abafar inconsistências, querendo sugar a vida de seus melhores fracassos, tirar o movimento e a capacidade de abertura característicos de sua obra – lembram os milionários de Gotham City em sua diversão de clube delirante. Em meio aos ratos e ao caos na cidade,o magnata Thomas Wayne e seus convidados, vestidos com seus looks black-tie, assistem a Tempos modernos, mas, como diz um rap antigo, não sacam “a dor e as lágrimas do palhaço”. Muito menos sua estranha risada.

Na conclusão de seu livro As políticas públicas da psicanálise, recém traduzido para o português, Stephen Frosh diz assim: “A psicanálise não é uma teoria social, nem um programa para a atividade revolucionária. Ao invés disso, é uma ferramenta fundamental para a compreensão da subjetividade. Ela revela o funcionamento da sociedade dentro de cada indivíduo, ela oferece um meio de confrontar diretamente as emoções e os investimentos de cada pessoa nas posições de identidade, e ela fornece um conjunto de críticas das distorções e do desespero que são suportados sob as condições de dominação”.

Que pesem todos os contrapontos, as críticas e considerações contrárias a essa definição, ela não deixa de levantar uma questão interessante. A quem interessa manter populações inteiras de Arthur Flecks longe das possibilidades dessa clínica e dessa discussão?

Vivian Whiteman é psicanalista e colunista de comportamento e cultura. Foi editora de moda do jornal Folha de S.Paulo.