Democracia: muito além de eleições

Por Luis Felipe Miguel

Nós nos acostumamos a julgar que democracia e eleições caminham sempre juntas. Onde há eleição, haveria democracia; promover a democracia seria expandir o processo eleitoral. Por isso, quando surgem determinados resultados eleitorais, nós quase desanimamos da democracia. Como é possível que tanta gente apoie quem debocha do sofrimento que causa? Democracia e eleições caminham juntas, sim, mas mantêm uma relação tensa e contraditória. Limitar a democracia ao processo eleitoral é desfigurar o ideal democrático – e, ao mesmo tempo, reduzir a qualidade potencial do voto.

Nós nos acostumamos a julgar que democracia e eleições caminham sempre juntas. Onde há eleição, haveria democracia; promover a democracia seria expandir o processo eleitoral. Por isso, quando surgem determinados resultados eleitorais, nós quase desanimamos da democracia. Como é possível que tanta gente apoie quem debocha do sofrimento que causa? Como é possível que o voto popular premie a incompetência, a ignorância e a desumanidade? Como é possível que a votem pela truculência policial aqueles cujos filhos são as vítimas prováveis da “bala perdida”, pelo Estado mínimo aqueles que sofrem com a pobreza e o desamparo, pela “meritocracia” aqueles que não têm chance já de largada?

O voto não revela necessariamente uma vontade esclarecida. Pode ser o veículo para o preconceito, o ressentimento, a desqualificação política. Se é assim, fica difícil aceitar que a democracia é uma boa forma de governo.

Para entender melhor a questão, é necessário deslocar a premissa. Democracia e eleições caminham juntas, sim, mas mantêm uma relação tensa e contraditória. Limitar a democracia ao processo eleitoral é desfigurar o ideal democrático – e, ao mesmo tempo, reduzir a qualidade potencial do voto.

O significado etimológico de “democracia”, como se sabe, é “governo do povo”. Herdamos a palavra, bem como boa parte do imaginário associado a ela, da Grécia antiga. Lá, o povo era uma parcela reduzida da população, pois os direitos políticos eram negados a quem fosse estrangeiro ou descendente de estrangeiros, aos escravos e libertos de ambos os sexos e às mulheres de todas as classes sociais. Mas esse povo decidia diretamente as questões públicas, nas assembleias abertas a todos os cidadãos. Os cargos permanentes eram preenchidos não por eleição, mas por sorteio, que tanto indicava a crença na igualdade de todos quanto expandia por todos os grupos sociais a experiência da gestão do governo.

Quando a ideia de democracia foi retomada, sobretudo com as revoluções americana e francesa, a possibilidade de seu exercício direto era mais remota. A “democracia representativa” parecia mais adequada a Estados extensos e populosos, nos quais uma assembleia cidadã se mostrava inviável. Quando a dinâmica da inclusão política se acentuou, com a incorporação paulatina de trabalhadores, das mulheres, das minorias étnicas, a mediação dos representantes se tornou ainda mais importante: eles formavam uma camada de negociação e de acomodação diante dos conflitos de interesses de grupos antagônicos.

Mas a democracia representativa é uma contradição em termos. É um “governo do povo” em que o povo não governa, pois é obrigado a delegar seu poder a uma minoria de representantes. E esses representantes, por sua vez, tendem a ser diversos do restante da população. Como regra, tendem a ser mais ricos, mais escolarizados, mais velhos, mais homens, mais brancos. Isso porque, como observou o cientista político francês Bernard Mann, eleições são democráticas numa ponta (todos podem votar, os votos valem igual), mas aristocráticas na outra. Para alguém ser eleito, tem que mostrar que é “melhor”, que tem qualidades especiais. E as qualidades valorizadas na eleição tendem a reproduzir as hierarquias sociais vigentes.

O sorteio foi descartado, nas democracias modernas, porque a escolha do representante por votação permite, em tese, que o eleitor controle melhor os compromissos que ele vai assumir. O sorteio é bom para sociedades que veem a si mesmas como indiferenciadas; a eleição é mais adequada para a representação de interesses diversos e em conflito. A questão, então, é saber até que ponto o eleitor comum terá discernimento diante das escolhas que lhe são apresentadas.

Ao escrever sua clássica defesa do sufrágio universal, no século XIX, John Stuart Mill expressou a crença de que, chamado a participar com seu voto, o eleitor se sentiria incentivado a conhecer melhor o mundo, a entender melhor a realidade. Uma esperança que a experiência desfez.

O voto é um incentivo muito pequeno para a qualificação política. Meu voto é um em milhões, a chance de que seja ele a decidir as eleições tende a zero: por que vou gastar meu tempo me informando? Assim, o eleitor costuma votar por inércia, reproduzindo o padrão de sua família; por conformidade a outros grupos sociais nos quais está imerso; ou, então, influenciado pelas técnicas de manipulação do marketing político.

A dupla emergência das mídias sociais e de uma extrema-direita renovada agravou o quadro, ampliando as possibilidades e a eficiência da manipulação. Foram desfeitos antigos consensos, erodiu-se a ideia de que o discurso político deve remeter de alguma forma a uma realidade factual (inaugurando-se o mundo da chamada “pós-verdade”) e passou a imperar o vale-tudo. O novo ambiente comunicacional, que fica numa zona cinzenta entre o privado e o público, torna difícil o debate e favorece a formação de bolhas discursivas onde as narrativas mais absurdas podem se converter em dogmas incontestáveis.

Diante disto, o que fazer? Uma boa parte da Ciência Política anglófona, assustada com o triunfo do Brexit, no Reino Unido, e sobretudo de Donald Trump, nos Estados Unidos, assumiu que era necessário limitar a democracia – restaurar o distanciamento entre as decisões políticas e o eleitorado, recompor a passividade do cidadão comum alimentando a crença em sua incompetência política, tudo o que o “populismo” teria afetado. É a leitura de best-sellers do tipo Como as democracias morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, ou Como a democracia chega ao fim, de David Runciman.

A salvação da democracia, assim, seria a desdemocratização. A melhor eleição, aquela em que o voto expressa pouco e decide quase nada.

Mas é possível pensar num caminho diferente. A ampliação dos espaços de debate e participação política no cotidiano gera um eleitorado mais capaz de produzir coletivamente seus interesses, de escolher com mais conhecimento seus representantes e de cobrá-los de forma mais firme e esclarecida. Não se trata da pseudoparticipação das correntes do zap, em que o indivíduo se sente ativo por passar adiante o meme ou a notícia falsa, mas da discussão nas associações, nos sindicatos, nos coletivos, em que a pessoa parte do local de trabalho, de estudo, de moradia ou de pertencimento para chegar no mundo social mais amplo.

É a aposta numa política que se embrenha do dia a dia, em vez de ficar restrita a espaços institucionais e chamar o cidadão comum apenas de quatro em quatro anos. Não se trata de abandonar a representação, mas de equilibrar a relação entre representantes e representados, qualificando o eleitor comum pela participação nas esferas mais próximas dele.

Não é tarefa para um piscar de olhos. Exige, dos agentes políticos comprometidos com uma democracia efetiva, a disposição para investir em algo além da disputa eleitoral, da conquista de votos, da obtenção de cadeiras nos espaços formais de poder.

No Brasil, depois do golpe que fraturou a Constituição, em 2016, e da chegada de um extremista antidemocrático à presidência, em 2018, a situação é ainda mais desafiadora. O segundo turno das eleições presidenciais decidirá se seremos capazes de garantir o mínimo – para, a partir daí, tentar reconquistar o terreno perdido e sonhar com maiores avanços – ou se vamos mergulhar de vez no retrocesso, na restrição de direitos, na perseguição a opositores, no autoritarismo que mantém, tanto da democracia quanto das eleições, apenas uma fachada ritual, desprovida de qualquer efetividade.

Luis Felipe Miguel é professor titular do Instituto de ciência política da Universidade de Brasília (UnB), onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê), e pesquisador do CNPq. Publicou, entre outros, os livros Democracia na periferia capitalista: Impasses do Brasil (Autêntica, 2022), O colapso da democracia no Brasil: da Constituição ao golpe de 2016 (Expressão Popular, 2019), Dominação e resistência – Desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018), Consenso e conflito na democracia contemporânea (Ed. Unesp, 2017), Notícias em disputa – Mídia, democracia e formação de preferências no Brasil (com Flavia Biroli, Contexto, 2017), O nascimento da política moderna: de Maquiavel a Hobbes (Ed. UnB, 2015), Democracia e representação: territórios em disputa (Ed. Unesp, 2014), Feminismo e política: uma introdução (com Flávia Biroli; Boitempo, 2014) e Mito e discurso político (Ed. Unicamp, 2000).