Editorial:

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Artigos:
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Aprovação do Estatuto da Cidade
Geraldo Moura

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Tatiana Schor
Cidades e seus fragmentos
Rogério Lima
Cidade, língua, escolae a violência dos sentidos
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A cidade como objeto de estudo
Maria Josefina Gabriel Sant'Anna
Poema:
Manual do novo peregrino
Carlos Vogt
 
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Os desafios de construção de uma cidade democrática a partir da aprovação do Estatuto da Cidade

Geraldo Moura

A recente aprovação pelo Congresso Nacional, após mais de dez anos de tramitação, da Lei n° 10.257/2001 conhecida como Estatuto da Cidade que regulamentou o capítulo de política urbana da Constituição Federal estabelecendo diretrizes gerais de política urbana, representou um inegável avanço na luta por um território mais justo e democrático. Prevendo a função social da cidade (e da propriedade), passou a respaldar os municípios na adoção de instrumentos legais que garantam a todos os setores da sociedade a equânime distribuição dos ônus e benefícios sócio-territoriais causados pelo processo de urbanização.

Ainda que parte de seu texto original tenha sido vetado, a existência do Estatuto deve ser entendida como uma importante conquista de entidades civis e de movimentos sociais ligados à reforma urbana que, por mais de uma década, estiveram inseridos em uma ampla discussão dos temas relativos ao desenvolvimento das cidades, imprimindo à essa lei, mesmo em sua forma final de redação, relevante legitimidade social.

A construção e o desenvolvimento tradicionalmente disseminados nas cidades brasileiras foram claramente marcados por um distanciamento entre a ordem urbanística vigente e a gestão do território municipal. Com isso, por estarem localizados na primeiro bloco, a abrangência do planejamento urbano e da legislação restringiram-se apenas à regulação das ações de uma parcela minoritária da população com real capacidade de participação no mercado imobiliário estabelecido, "sobrando" uma maioria de cidadãos que se instalaram no contexto urbano à margem da própria legalidade urbanística.

Esse "esquecimento" do poder público diante da maioria excluída, longe de ser uma atitude irracional, é resultado de uma lógica sutil e perversa, existente e fundamental na perpetuação desse paradigma de desenvolvimento. E, como consequência dessa responsabilidade institucional não assumida pelo Estado, temos que o agente que ocupa o cargo público terminou muitas vezes, por delegar-se um papel personificado de executor e interlocutor entre os atores sociais envolvidos, criando e reforçando uma relação política de favores baseada no clientelismo.

Mais que a "tradução" ou a consequência do quadro de profundas diferenças sociais e da concentração de renda do país, esse modelo de separação entre a gestão e o planejamento foi e continua sendo o principal responsável pelas profundas desigualdades presentes na construção do território urbano, influenciada, sobretudo pelo poder do capital e pela lógica mercantil. Essa situação por sua vez, acarreta em uma total discrepância territorial da qualidade de vida vinculada e determinada pela questão econômica.

O que se vê de uma maneira geral nas cidades brasileiras é uma grande maioria das oportunidades de expansão econômica e das ofertas de serviços concentradas em "ilhas de inclusão" aonde há uma tendência de instalação da população com melhores condições sociais, em oposição a uma porção majoritária que tem sensivelmente dificultada seu acesso às oportunidades de trabalho e lazer.

Como estratégia de construção de uma cidade mais justa, o Estatuto procurou garantir, sobretudo em seu capítulo IV, a participação popular através de instrumentos como os conselhos de política urbana; os debates, audiências e consultas públicas e as conferências de desenvolvimento urbano, entre outros. Esses mecanismos visam também, aumentar a pouca interlocução existente entre poder público e sociedade civil em geral e, pelo forte impacto que os planos e normas urbanísticas acarretam na cidade como um todo, tentam impedir o caráter tecnicista, adotado tradicionalmente na discussão urbana, ampliando para além das fronteiras dos setores que têm atividades ligadas diretamente a construção da cidade.

É necessário, contudo, para a concretização dessa efetiva participação que a sociedade e o Estado estejam preparados para essa situação. É preciso que os atores sociais envolvidos, e não só o poder público e as áreas técnicas, estejam capacitados para enfrentar o debate, o que significa estarem munidos com as informações e os dados necessários a essa atividade. Mas é fundamental também, que os gestores do poder municipal não vejam nessa nova situação uma ameaça ao poder obtido eleitoralmente. E aí residem problemas aos quais devemos estar atentos: à medida que o Estatuto previu o fomento da participação dos diversos agentes sociais que atuam no cenário urbano convidando e instruindo-os a posicionarem-se segundo seus interesses em uma instância pública, legítima e democrática de discussão, criou também e, em consequência, novas formas de disputa do poder local que, não raro, vêm chocando com as formas tradicionalmente empregadas, enfrentando resistência daqueles setores detentores desse poder.

Além disso, a vitória e a ascensão dos partidos progressistas em várias cidades nas últimas eleições municipais, entre elas as três maiores do Estado de São Paulo (São Paulo, Guarulhos e Campinas, respectivamente), potencializou um paradoxo a ser enfrentado. Por um lado, se representou uma maior possibilidade de aplicação dos instrumentos urbanísticos recém aprovados, dentro de um compromisso mais democrático e popular (ao menos essa foi a proposta vitoriosa nas eleições). Por outro, essa aplicação além de tencionar conflitos pela posse da terra urbana, até então "adormecidos" pela inexistência de mecanismos mais acessíveis e democráticos, acabou por significar um remodelamento de forças políticas ligadas à questão urbana, que ampliou a participação dos agentes e alterou em parte o papel e a importância do poder público nesse processo.

Ocorre que essa alteração para o gestor público significou, em alguns casos, uma profunda mudança na sua lógica de poder e, este agente, ainda que nesses casos tenha uma postura ideológica vinculada aos segmentos democráticos, nem sempre se encontra preparado para enfrentar uma transformação desse porte.

Outro importante fator a ser encarado é que, estando os movimentos sociais e entidades ligadas à luta por moradia e da reforma urbana historicamente mais próximos dos setores (e partidos) políticos com tendências progressistas, as lideranças e os técnicos que atuam nessa área vieram a ser colocados em um curioso dilema.

O resultado das urnas obtido no último pleito municipal significou, em muitos casos, que a mesma parcela que teve destacada importância na militância durante o processo eleitoral, encontra-se hoje frente a um agente público com o qual tem certo alinhamento ideológico (quando não interpretando o duplo papel), reivindicando frente a esse agente, uma maior participação.

A vitória das esquerdas representou também, que uma parcela relevante de militantes e técnicos engajados na luta pela reforma urbana migraram para o setor público, trazendo uma momentânea sensação de esvaziamento dos movimentos. Mesmo que essa noção seja falsa sabe-se, porém, que o fortalecimento dos movimentos sociais e sua real inserção na discussão sobre os destinos da cidade evidenciou a existência dessas instituições aumentando a probabilidade de surgimento de uma disputa interna com outros segmentos mais conservadores nunca antes vinculados a essa discussão.

Nesse novo contexto, onde a disputa política passa a se dar também de novas formas e em outros espaços, o poder público (e consequentemente seu gestor), enquanto agente implementador dessas medidas tem o desafio e o dever de entender essas alterações não como uma perda de poder político, mas como uma etapa de um processo que ampliará de fato a participação popular na discussão das cidades. Também deve atentar-se em não realizar uma análise da situação sob uma ótica maniqueísta, percebendo apenas fatos positivos da participação popular quando alinhada ideologicamente ao governo. Compreender a importância do discurso permanente com setores sociais variados, mesmo que, em um olhar mais superficial, pareça contraditória algumas vezes a adoção de posturas conservadoras de determinados grupos que coincidem justamente com o "olhar do opressor".

É função do poder público potencializar essa discussão ainda que venha a conflitar com alguns de seus compromissos e obrigações políticas assumidas, mesmo que legítimas. Cabe ainda, municiar os agentes com informações vitais que possibilitem uma constante ampliação e aprofundamento das críticas bem como, da percepção de novas demandas para os municípios. Pois, já se sabe da pouca eficácia de aplicação de determinado instrumento quando utilizado a partir de uma demanda construída por agentes externos ou por imposição institucional (PORTELA, MENDES & MOURA: 2000).

Ainda que percebidas intuitivamente, as contradições colocadas nesse artigo vêm sendo demonstradas em exaustão pelos agentes públicos municipais em sua prática diária. Fica assim evidente, que a aplicação prática dos conceitos acima mencionados, ainda que para os setores com maiores compromissos democráticos, é sensivelmente dificultada quando nos vemos diante da dinâmica de um cotidiano de administração pública, e o desafio principal, em um momento histórico que a instrumentalização disponível permite reais transformações estruturais de inegável evolução qualitativa para o planejamento e a gestão das cidades, tornar-se então evitar contradições e conciliar a experiência vivida enquanto poder municipal com uma trajetória baseada em posturas éticas com respaldo ideológico.

Geraldo Moura é arquiteto e urbanista com especialização em Desenho e Gestão do Território Municipal pela FAU-PUC Campinas e trabalha atualmente na Prefeitura Municipal de Guarulhos/SP.

 

Atualizado em 10/03/2002

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