Editorial:

As cidades e os muros
Carlos Vogt

Reportagens:
Prós e contras da revitalização urbana
Enfim o Estatuto da Cidade
Programa Habitat procura desenvolver a qualidade de vida nas cidades
Ocupações revelam déficit habitacional
Fórum Social propõe uma outra cidade possível
Novas metrópoles, velhos problemas
Conflitos entre centro e periferia
Qualidade das águas é cada vez pior
Lixo é problema ambiental com agravantes sociais
Transporte em São Paulo: conflitos e soluções
Poluição sonora piora ambiente urbano
Preservação ambiental: destino alternativo para o litoral sul de São Paulo?
Cidade tenta unir tecnologia com inclusão social
Educação para uma nova cidade
Brasília contrastes de uma cidade planejada
Vilas significaram distância entre patrões e operários
Artigos:
Dimensões da tragédia urbana
Ermínia Maricato

Aprovação do Estatuto da Cidade
Geraldo Moura

O passado nas cidades do futuro
Cristina Meneguello
"As cidades nos países subdesenvolvidos" em um mundo globalizado
Tatiana Schor
Cidades e seus fragmentos
Rogério Lima
Cidade, língua, escolae a violência dos sentidos
Cláudia Pfeiffer
A cidade como objeto de estudo
Maria Josefina Gabriel Sant'Anna
Poema:
Manual do novo peregrino
Carlos Vogt
 
Bibliografia
Créditos

 

 

Retrato da Cidade pelos seus fragmentos

Rogério Lima

A leitura dos textos que narram as cidades e a vida cotidiana nelas vividas é uma espécie de leitura de fragmentos de mapas da cidade, é sempre a leitura de uma virtualidade, de problemas e problematizações que essas cidades apresentam. Cada texto apresenta um fragmento de uma determinada cidade, que somente a leitura é capaz de juntar e somente a partir da leitura é possível construir um sentido para esses estilhaços de cidade, disseminados nos discursos narrativos urbanos. Eles presentificam formas realizadas de imaginação da(s) cidade(s), as diversas maneiras como elas se entrecruzam em realizações literárias e/ou em outras semióticas narrativas, tão diversas e ao mesmo tempo tão iguais.

Essa fragmentação do que aqui é classificado como mapas textuais carrega consigo a vontade de compreender as tensões enfrentadas e retratadas pelas narrativas urbanas e seus narradores. Os narradores da cidade vivem em constante tensão com o espaço narrado, algumas vezes, chegam mesmo a não compreender o que se passa ao seu lado, pois as transformações são de tal forma vertiginosas, velozes e brutais que mal há tempo para acompanhá-las.

Por isso, a impossibilidade de apreender a cidade na sua totalidade e com um único centro, pois já não há mais cidade com um único centro. O centro que representava um lugar geográfico específico, marcado por monumentos, cruzamento de certas ruas e avenidas, casas de espetáculos (teatros, cinemas), restaurantes, ruas de pedestres. A pesquisadora Argentina Beatriz Sarlo[1] chama atenção para o fato de antes podermos discutir o centro, se ele de fato terminava em determinada rua ou um pouco depois, "mas ninguém discutia a existência mesma de um único centro: imagens, ruídos, horários diferentes". Simplesmente ia-se ao centro como se fosse uma atividade excepcional, como um programa de final de semana, para as compras ou, simplesmente, para ver ou para estar no centro. Hoje, as pessoas pertencem mais aos bairros do que nos anos vinte, quando a ida ao centro trazia consigo um horizonte de promessas, de desejos e perigos, era a representação da aventura e exploração de um espaço sempre novo. Já não há mais necessidade de deslocamento dos bairros de classe média para o centro. As distâncias se encurtaram e as pessoas já não se deslocam na cidade de ponta a ponta. Os bairros mais ricos configuram os seus próprios centros, mais limpos, mais organizados, mais iluminados e mais seguros e "com ofertas materiais e simbólicas mais variadas".

As transformações urbanísticas e tecnológicas não permitem mais espaços comuns na cidade. Esses espaços, que eram representados pelas praças, já não têm mais importância nem sentido sob o ponto de vista da lógica da vivência do urbano. Os espaços comuns foram substituídos por espaços de consumo que se realizam nos shoppings centers. O que importa é a circulação do cidadão. A sua conexão é que é o mais importante. Mas nem por isso o drama da cidade desapareceu, ele se desenrola, hoje, justamente nos espaços de conexão (trens, metrôs e outros) e durante os momentos em que a conexão acontece.

Hoje o turista já não experimenta manusear, numa cidade desconhecida, numa esquina, sob tempo ruim, um dos grandes mapas de papel, que amarfanhavam a cada lufada de vento, e que ao final se transformavam num amontoado de folhas sujas e rasgadas que o atormentavam durante toda a viagem. Hoje é possível ao viajante encontrar uma literatura em expansão sobre orientações turísticas que ensina como adquirir a sensação de conforto doméstico em terras estranhas e evitar os embaraços criados pelas diferenças culturais.

A maior parte do turismo atual é do tipo home plus (o sol, o mar, a areia, a vida selvagem etc.) onde toda e qualquer experiência nova e possivelmente perturbadora é rigorosamente controlada. Evidentemente, as formas de percepção da cidade se processarão de maneira muito mais diferenciada para as pessoas que optam por esse tipo de turismo do que para aquelas que se colocam em contato por meio de fluxos culturais globais e "que não só se sentem em casa em outras culturas, mas também buscam e adotam uma postura reflexiva, metaintelectual ou estética para experiências culturais divergentes."[2]

Esse é o caso de Walter Benjamin, filósofo, por sua postura crítica em relação à cultura e aos movimentos sociais de seu tempo, e Wim Wenders, cineasta alemão, outro bom exemplo de intelectual transnacional, que toma para si uma postura reflexiva, metacultural e estética para experiências culturais divergentes que experimenta. Esse também me parece ser o caso do escritor e cineasta norte-americano Paul Auster. Wim Wenders e Paul Auster, por meio dos seus trabalhos O Céu de Lisboa, o primeiro, e Sem Fôlego, o segundo.

A cidade de Lisboa se presentifica para Wim Wenders como espaço de recuperação da infância vivida nas cidades alemãs e configura-se também como espaço de recuperação da imagem de uma Europa que já não existe mais. O choque cultural que Wenders viveu ao conhecer Nova York é o ponto de ligação com a mesma nova York multirracial e multicultural que Paul Auster descentraliza e desconstrói nos seus dois filmes: Cortina de Fumaça e Sem Fôlego. No seu livro América, Baudrillard formula a seguinte pergunta: por que é que as pessoas vivem em Nova York? Para ele, elas não têm nenhuma relação entre si. Mas uma energia que se forma no que ele classifica como "sua promiscuidade pura" e "uma sensação mágica de contigüidade e de atração para uma centralidade artificial" é o que possibilita que Nova York se realize como um universo "auto-atrativo", o qual não há razão nenhuma para abandonar. Para Baudrillard, não há nenhum motivo para estar lá, mas somente o "êxtase da promiscuidade".

Néstor García Canclini[3] afirma que as grandes cidades, dilaceradas pelo crescimento desordenado e por um multiculturalismo conflitante, são o cenário perfeito para o declínio das metanarrativas históricas, das utopias "que imaginaram um desenvolvimento humano ascendente e coeso através do tempo". Mesmos nas cidades impregnadas de signos do passado, como a capital mexicana ou Lisboa, o encurtamento do presente e a dúvida diante do futuro incontrolável são fatores redutores das experiências temporais que privilegiam as conexões simultâneas. Narrar a megacidade polifônica, exorbitantemente eloqüente, nos coloca frente a frente com uma ansiedade: já não se trata de localizar no mapa uma direção a partir da qual poderíamos chegar a mil lugares sem chegar a nenhum ponto. O que nos desestabiliza é que os mapas que colocavam ordem nos espaços e geravam significação global para os comportamentos, para as travessias, estão se desvanecendo.


Rogério Lima é doutor em Semiologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Professor de Teoria Literária na Universidade de Brasília.

Notas:

  1. Sarlo, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte e vídeo-cultura na Argentina. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997.[voltar]
  2. Featherstone, Mike (Org.). Cultura global: nacionalismo, globalização e modernidade. 2a edição. Petrópolis: Vozes, 1998.[voltar]
  3. Canclini, Néstor García. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. 3 ed.. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997.[voltar]
 

Atualizado em 10/03/2002

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