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O passado nas cidades do futuro
Cristina Meneguello
"As cidades nos países subdesenvolvidos" em um mundo globalizado
Tatiana Schor
Cidades e seus fragmentos
Rogério Lima
Cidade, língua, escolae a violência dos sentidos
Cláudia Pfeiffer
A cidade como objeto de estudo
Maria Josefina Gabriel Sant'Anna
Poema:
Manual do novo peregrino
Carlos Vogt
 
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O passado nas cidades do futuro

Cristina Meneguello

Quando se pensa no futuro das cidades, impõem-se temas como a explosão populacional e a conseqüente sobrecarga de transportes, recursos e serviços. Aglomerados urbanos gigantes, que se multiplicam nos países da África, Ásia e América Latina, e a veloz taxa de crescimento de cidades de porte pequeno e médio, em todo o mundo, indicam aos estudiosos das cidades que nos próximos anos testemunharemos não a dissolução dos organismos urbanos, mas sim sua intensificação.

Conforme dados recentes das Nações Unidas, nos próximos 15 anos várias mega-cidades atingirão a marca de mais de 10 milhões de habitantes, e, salvo exceções como Tóquio e Nova York, a imensa maioria se localizará em países com altíssimas taxas de miséria e de desigualdade social. Dentro das duas próximas décadas, mais de 15 milhões de habitantes viverão em cidades como Lagos na Nigéria, Dakha em Bangladesh, Calcutá e Delhi na Índia, Jacarta na Indonésia, Karashi no Paquistão, Cidade do México e, estima-se, aqui no Brasil a cidade de São Paulo contará com uma população de mais de 20 milhões de pessoas. (Fonte: Population Division of the Department of Economic and Social Affairs of the United Nations Secretariat, World Urbanization Prospects: 2001).

Segundo essa avaliação de que os países subdesenvolvidos serão os grande atingidos, a sustentabilidade das cidades tem sido apresentada como uma solução, visto que a preocupação com o ambiente de forma geral abrange uma gama de questões que vão da produção de alimento, consumo de energia, gerenciamento do transporte e do lixo até a eliminação da pobreza, a proteção das fontes geradoras de energia e a requalificação da vida cultural urbana. Nesse quadro, declarações de que as cidades do futuro deverão abranger a diversidade e manter - ou reatar - os liames com o passado são moeda corrente. Tais discursos escondem, todavia, um tema extremamente complexo: o da preservação de traços do passado, presentes nas estruturas e nas relações sociais, em cidades em constante mutação. A preservação das marcas do passado, usualmente defendida como um fator de "qualidade de vida" para as populações urbanas, vem muitas vezes propor o falseamento ou uma reinterpretação do passado urbano, revelando escolhas e omissões evidentes.

Podemos pensar esse problema em dois diferentes níveis. Em primeiro lugar, as mega-cidades são muitas vezes entendidas como cidades globais, ou seja, que ultrapassaram fronteiras históricas e geográficas e que disponibilizam cultura, produtos e serviços semelhantes aos de qualquer outro grande centro mundial. Mas, por outro lado, os organismos de preservação do patrimônio, oficiais ou não, investem exatamente no estabelecimento de identidades e peculiaridades que diversifiquem um local dos demais, que dêem a ele a medida do raro, do diferente, do único. Assim, enquanto o discurso é global, o investimento no passado é sempre mediado pelo único, não raro pelo "exótico". O passado das cidades torna-se, assim, um espaço que não possui nenhuma permanência dentro do presente - é como se o passado e a história fossem locais pitorescos a serem visitados, jamais forças ativas dentro do presente. Destarte, dá-se primazia à proteção de bens edificados por sua concretude e as práticas são consideradas por demais cambiantes para serem fixadas.

Nesse modo de ver, dificilmente a idéia de patrimônio urbano pode ser associada a grandes cidades. Apenas enclaves (como por exemplo os centros das cidades) têm sido entendidos como passíveis de serem preservados. Afinal, as cidades consideradas "patrimônio mundial" não são as mega-cidades ou as grandes metrópoles mas justamente aquelas que, por diferentes razões - na maioria dos casos a decadência política ou econômica ocorrida no passado - tiveram sua expansão refreada e suas fronteiras bem definidas. No caso do Brasil, as cidades listadas pela Unesco como patrimônio mundial são Salvador, Brasília, Olinda, Ouro Preto, São Luís do Maranhão e a recentemente incluída cidade de Goiás (Fonte:UNESCO. Organization of World Heritage Cities).

Desse modo, um segundo nível deste problema deriva das escolhas sobre qual passado deve ser preservado nas grandes cidades. No caso brasileiro, essa questão é flagrante: frente a grandes cidades em expansão, extremamente mutáveis, nas quais as populações circulantes não são sequer oriundas do local onde vivem, qual patrimônio histórico deve ser escolhido? Usualmente, defende-se um patrimônio que se identifica a épocas consideradas áureas: casarões de barões do café e mansões de ricos industriais do passado ganham relevo e "usos culturais", levando, entre outros fenômenos, à multiplicação de centros culturais em prédios considerados históricos. Ao mesmo tempo, o que tem muito mais a dizer das grandes cidades e de seu desenvolvimento histórico, como por exemplo seu patrimônio industrial (fábricas, estações ferroviárias, trilhos, maquinário, galpões industriais) é diariamente destruído ou abandonado à própria sorte; é como se não estivessem adequados ao passado "romântico" e turístico que se quer aplicar às cidades.

Observa-se essa questão especialmente em relação aos centros das grandes cidades. Se no passado os centros concentraram funções comerciais e políticas e garantiam uma certa identidade urbana, hoje tais locais, que nem ao menos são mais o centro geográfico das cidades e se encontram ocupados de forma desordenada, são reinvestidos de valor: "revitalizar o centro da cidade" se torna uma estratégia, um mote político, e se afigura, novamente, como uma solução para os males urbanos. O investimento na idéia de centro surge como solução, igualmente, porque traz uma recuperação da identidade, da diversidade, que busca conferir aos moradores uma sensação de pertencimento em uma cidade percebida de forma fragmentada e compartimentada.

Não se pode ignorar que soluções e propostas recentes tem problematizado o uso dos centros de forma bastante interessante, como no caso da utilização dos antigos edifícios para uso habitacional; da antiga fórmula urbana de usos mistos (habitacionais e comerciais) que garantem às regiões antes apenas comerciais uma vitalidade durante todo o tempo ou mesmo do vigor urbano e arquitetural que estimula a freqüência a regiões antes evitadas.

Por outro lado, a preservação do patrimônio nas grandes cidades, hoje, ainda nos remete a uma identidade criada, ensinada ou forjada, visando atender aos imperativos do turismo, do consumo e da imagem corporativa de bancos e grandes empresas. Experiências como as ocorridas no Pelourinho em Salvador ou no Pólo Bom Jesus em Recife culminaram na expulsão das populações tradicionais de suas moradias e na criação de "ilhas de lazer" destinadas ao consumo abastado. Esses usos, todos juntos, contribuem para que se crie uma imagem "fake" do passado a ser consumida, por sua vez, mostrada aos turistas ou absorvida nas publicidades corporativas. E, ao pensarmos nas futuras mega-cidades na África e América Latina que ainda têm que conciliar o passado dos colonizadores com o passado das populações locais, ou as práticas e edifícios nascidos desse encontro, a situação torna-se ainda mais complicada - como no caso paradigmático da cidade do México, onde se busca conciliar o passado dos astecas, o dos colonizadores e as necessidades da megalópole.

Logo, a preservação do passado nas grandes cidades, para possuir algum significado para as populações atuais ou futuras, deverá libertar-se da idéia de que o passado está morto e congelado, e propor hipóteses de qualificação do espaço urbano que recuperem a importância do passado na vida atual, compreendendo a constante transformação que faz parte do viver urbano.

Cristina Meneguello é doutora em história e professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas.

 

Atualizado em 10/03/2002

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