| Cidade, 
              Língua, Escola e a violência dos sentidos[1] 
               Claudia 
              Castellanos Pfeiffer Trago 
              para esse espaço de reflexão uma breve análise 
              do funcionamento das estatísticas no que diz respeito à 
              construção de imaginários sobre língua, 
              sujeito escolar e espaço urbano. Relação que, 
              de modo tangencial, toquei em minha tese de doutorado. Essa vontade 
              se fez maior diante das matérias com que me deparei no jornal 
              de Domingo da Folha de São Paulo no Caderno 'Folha Campinas' 
              do dia 24 de junho de 2001. São seis matérias no total, 
              todas assinadas pelo mesmo jornalista, ocupando a primeira, a segunda 
              e a terceira páginas do Caderno 'Folha Campinas'. E eu diria 
              ainda, remetendo às discussões de Orlandi (2001) sobre 
              o assunto, são versões do jornalista que vão 
              se apresentando a cada matéria.
  Em 
              primeira página lemos a chamada "Educação: 
              Pelo menos 235 estudantes que cursam a 5ª série de escolas 
              estaduais de Jundiaí têm dificuldade de leitura" 
              e, em letras garrafais o título da matéria "Escolas 
              abrigam[2] 
              alunos que não sabem ler". Já no corpo da primeira 
              matéria temos:  
               
                | "Pelo 
                    menos 2.800 (4,3%) dos 65.406 estudantes da 5ª à 
                    8ª séries da rede pública de ensino das 
                    regiões de Campinas e de Jundiaí estão 
                    com escolaridade atrasada ou não sabem ler. 
                    A informação consta de levantamento obtido pela 
                    Folha na semana passada nas Diretorias Regionais de Ensino 
                    nas duas cidades. (§)As estatísticas do Estado 
                    revelam um panorama mais preocupante na 8cidade de Jundiaí, 
                    onde foi detectado que 235 (4%) dos 5.800 alunos que freqüentam 
                    a 5ª série da rede fundamental de ensino possuem 
                    dificuldade em leitura, podendo ser considerados semi-analfabetos. 
                    (§) São considerados semi-analfabetos os alunos 
                    que terminam os primeiros quatro anos do ensino fundamental 
                    sem conseguir acompanhar os estudos, possuem dificuldades 
                    de interpretação, aprendizagem, leitura e escrita 
                    e, por isso, precisam de acompanhamento especial. 
                    (§) A região coberta pela Diretoria Regional de 
                    Jundiaí também levantou que 492 alunos, ou 2,7% 
                    dos 17.987 estudantes de 5ª a 6ª séries da 
                    cidade, de Campo Limpo Paulista e Várzea Paulista têm 
                    dificuldades para ler e escrever. (§) Essas crianças 
                    freqüentaram o ciclo de alfabetização (da 
                    1ª à 4ª séries) na rede pública 
                    municipal e foram considerados com alfabetização 
                    defasada pelo Estado, que as avaliou e as reteve por um ano 
                    para um programa especial de educação. (§) 
                    Segundo o secretário da Educação de Jundiaí, 
                    (...), o município está investindo na capacitação 
                    de professores para reduzir o índice de alunos que 
                    saem das suas escolas sem uma base de alfabetização. 
                    (§) As duas diretorias de ensino da região de 
                    Campinas, que também incluem escolas de Valinhos e 
                    Vinhedo, não forneceram números de semi-analfabetos 
                    da rede, mas revelaram que, dos 47,4 mil alunos que estudam 
                    entre as 5ª e 8ª séries do ensino fundamental, 
                    2.341 estudantes (4,9%) estão com escolaridade atrasada. 
                    (§) Esses alunos precisam ter seus estudos atualizados 
                    pelo programa de classes de aceleração, criado 
                    pelo Estado após a determinação da não-retenção 
                    de alunos por repetência, em vigor desde 1996.(§) 
                    As crianças que estudam nas classes de aceleração 
                    da 5ª série nessa região são 1569. 
                    Eles representam 3,3% do total de alunos do ensino fundamental 
                    administrado pelas Diretorias. (§) Segundo doutoranda 
                    em educação pela Unicamp (...), os alunos que 
                    chegam com defasagem de ensino ao ciclo da 5ª à 
                    8ª série, provavelmente sairão das escolas 
                    sem uma educação adequada. (§) "A 
                    Alfabetização hoje é vista como um processo, 
                    e se faz entre a 1ª e a 4ª série, não 
                    no outro ciclo"(...)." |  Assim 
              termina essa matéria que introduz e dá mote para as 
              outras cinco que compõem o tema central do Caderno daquele 
              Domingo sobre a Educação. Das outras matérias 
              tomarei breves passagens e apenas da segunda, terceira e quarta 
              matéria. Mas antes de partir para essas matérias, 
              gostaria de me deter em alguns funcionamentos discursivos de que 
              posso falar a partir da primeira matéria citada. Chamo 
              atenção para uma presença que vai se construindo 
              no decorrer da matéria de uma imagem mais geral e já 
              cristalizada do aluno como aquele que tem dificuldades de aprendizagem 
              e do professor como incapaz (precisa de cursos de capacitação). 
              No embate com essas imagens, vemos um primeiro lugar sendo apontado 
              para a responsabilidade pelos índices apresentados: a rede 
              municipal de ensino, que alimenta em sua maioria, o primeiro ciclo 
              do ensino fundamental; vêm dela, portanto, os alunos das 5ªs 
              séries considerados semi-analfabetos. E é exatamente 
              nesse jogo de atribuição da responsabilidade a setores 
              da sociedade (seja a rede municipal, seja o professor, seja o aluno), 
              que se estabiliza uma imagem cristalizada: do aluno enquanto semi-analfabeto. 
              Finalmente, podemos dizer que essa cristalização se 
              fecha discursivamente, com a enunciação vinda do lugar 
              do especialista, ao afirmar que, sendo a alfabetização 
              um processo, restrito ao segundo ciclo do ensino (e evidencio a 
              contradição), quem não se alfabetiza no primeiro 
              ciclo, mantém-se semi-analfabeto. (Não entrarei em 
              discussões teóricas do que se está sendo dito, 
              mas dos efeitos imaginários daquilo que se diz). A segunda 
              matéria se intitula "Dirigentes dizem que migrações 
              geram as distorções no ensino" e se inicia com: 
               
               
                | "Dirigentes regionais de educação de Campinas 
                  e Jundiaí dizem acreditar que a migração 
                  de pessoas de regiões mais pobres do país 
                  para o interior de São Paulo contribui para as chamadas 
                  'distorções'de ensino, que permitem 
                  a existência de semi-analfabetos na 5ª 
                  série da rede estadual. (...)(§) Segundo o dirigente 
                  da região oeste de Campinas, (...), a defasagem de alunos 
                  na região é provocada pela migração 
                  e também pela experiência individual de 
                  cada aluno." |  Quero 
              agora chamar atenção para as formas materiais: 'abrigam' 
              (no título da primeira matéria, linha 2) e 'permitem 
              a existência' (linha 4 da segunda matéria). Nelas vou 
              percebendo um jogo parafrástico que ecoa sentidos no processo 
              de personificação do sujeito escolar como o 
              problema a ser extinto. O semi-analfabetismo, ou o sistema educacional 
              que permite a construção do semi-analfabetismo, deixa 
              de ser o objeto. Trata-se do semi-analfabeto. Há nesse jogo 
              parafrástico, eu diria, uma inversão perigosa que 
              coloca no sujeito a personificação do problema, descoisificando 
              o problema. O problema passa a ser o sujeito. Junto a esse funcionamento 
              descrito, junta-se outro que é o da identificação 
              das razões pelo alto índice de semi-analfabetos. essa 
              defendida distorção acaba por regionalizar o problema 
              em torno de pessoas específicas que podem ser apontadas como 
              as responsáveis pelo semi-analfabetismo. Assim, personifica-se 
              o problema para que, depois, se evidencie as "pessoas" 
              responsáveis que dão corpo a essa personificação, 
              preenchendo esse lugar que não deveria existir. Uma presença 
              não bem-vinda, mas abrigada (proteção 
              contra quem?). O processo de preenchimento dessa personificação 
              do semi-analfabetismo também se dá através 
              da qualificação desse sujeito como aquele que deve 
              receber atendimento especial, ele preenche um lugar do objeto das 
              políticas públicas do acompanhamento especial. Ser 
              semi-analfabeto, jogo parafrástico com 'não conseguir 
              acompanhar os estudos', 'ter dificuldade de interpretar, de aprender, 
              de ler e de escrever' (linhas 12 e 13 da 1ª matéria), 
              mostra-se ser um grupo à parte que, através das estatísticas, 
              não só ganha evidência enquanto grupo à 
              parte (deve ter acompanhamento especial), como também ganha 
              visibilidade em suas origens: são migrantes de regiões 
              pobres e/ou experienciadores de uma vivência muito aquém 
              da necessária para se estar condizentemente na escola. São 
              indesejáveis extrapolando os limites antes tão bem 
              traçados... A terceira 
              matéria intitulada "Jundiaí investe na capacitação 
              de professor" começa dizendo: 
               
                | "O 
                    secretário da educação de Jundiaí, 
                    (...), informou que a Prefeitura está preocupada com 
                    os 235 alunos semi-analfabetos que saíram da 4ª 
                    série das escolas municipais para as estaduais, este 
                    ano, e que vai investir nos professores para "zerar" 
                    esse número(elipse= esse número de semi-analfabetos) 
                    (...)". |  De 
              um lado, textualiza-se o lugar da administração pública 
              como a responsável por apontar para as causas do problema, 
              repassando a responsabilidade aos professores: incapazes de ensinar; 
              de outro lado vai-se mais uma vez na direção de cristalizar 
              a imagem do semi-analfabeto. Não se trata do analfabetismo, 
              do semi-analfabetismo, de problemas com o ensino, com a educação, 
              mas do problema do sujeito semi-analfabeto, esse que insiste em 
              existir. O fato da presença desse "sujeito" do 
              problema não pode ser reduzido a uma escolha de estilo do 
              jornalista que "optaria" por discutir a questão 
              usando da pessoa que sofre o problema e não do problema-objeto 
              (o semi-analfabetismo) como sujeito-tema da matéria. Trata-se 
              de um mecanismo perverso (e que não está na ordem 
              do intencional) que leva o sujeito como a prova inquestionável 
              da existência do problema, da personificação 
              do problema e, portanto, consistindo nele mesmo a causa de seu problema. A quarta 
              matéria intitula-se "Para especialista, programa é 
              inadequado" e começa com: 
               
                | "'O 
                    programa de classes de aceleração não 
                    é um instrumento adequado para reduzir o índice 
                    de semi-analfabetos dentro da escola'. A opinião 
                    é da doutoranda em educação pela Unicamp 
                    (...)."  |  Novamente 
              a personificação do problema: não se trata 
              do semi-nalfabetismo brasileiro, mas de um semi-analfabeto que deve 
              ser extinto. Reduzir o índice de semi-analfabetismo é 
              muito diferente de reduzir o índice de semi-analfabetos. 
              esse tipo de formulação só se dá quando 
              já há o trabalho ideológico dos sentidos que 
              associa o processo de não-alfabetização e sua 
              conseqüência - o estado de estar semi-analfabeto - , 
              reduzindo o processo ao sujeito que o sofre, cristalizando no imaginário 
              de todos o problema do semi-analfabeto: sua existência. Trago 
              essa cristalização dentro de um texto formulado por 
              uma pesquisadora que, se confrontada com essa análise, diria, 
              muito provavelmente, que jamais teria tido a intenção 
              de colocar no sujeito qualificado como semi-analfabeto a responsabilidade 
              de seu estado-ser-existência. Como vemos o problema não 
              é das intencionalidades, mas do trabalho ideológico 
              de sentidos dominantes na formação social em que nos 
              inserimos. A direção 
              argumentativa (não a do nível da formulação, 
              mas a do nível da constituição dos sentidos) 
              construída pela seqüenciação das matérias, 
              ou, em outras palavras, a textualização dos sentidos[3], 
              apresenta na evidência dos sentidos o problema em que o semi-analfabeto 
              se constitui ao existir, ao estar presente e evidente, além 
              de circunstanciar o problema, regionalizando-o. Ele pode ser discernível, 
              alcançável. Responsabiliza, pois, o semi-analfabeto 
              por expor sua existência. A estatística, 
              que em nosso imaginário constrói generalizações 
              sobre a realidade de modo a conhecermos melhor sobre ela, efetiva 
              uma sectarização da sociedade, apontando para pontos 
              específicos, grupos específicos, agrupados, visualizados, 
              expostos pelas estatísticas, como responsáveis pelos 
              problemas que os números apresentados evidenciam. É 
              um jogo pérfido que, ao mesmo tempo em que através 
              dos números enuncia "aqui tem um problema", regionaliza 
              o problema. Nesse sentido, gostaria de trazer algumas considerações 
              que fiz em meu doutorado. Tratando 
              das narratividades que percorrem a própria institucionalização 
              da escolarização, trabalhei com alguns documentos[4] 
              que fazem parte da historiografia do século XIX sobre a educação 
              brasileira, com o objetivo de compreender sentidos que nos constituem 
              hoje como sujeitos escolarizados. Sujeito, tal como venho compreendendo 
              em meu percurso analítico, que se constitui como sujeito 
              urbano escolarizado. Sujeito em uma sociedade que constrói 
              seus espaços de significação tocados de uma 
              só vez pelos sentidos do letramento e da urbanização, 
              em uma palavra : civilização. Trabalhar 
              com sentidos produzidos nas narratividades sobre a educação 
              permite-nos acessar um vai-e-vem de sentidos que apontam para uma 
              discursividade hoje dos lugares construídos pelos sentidos 
              de escolarização. Espaço discursivo da escolarização 
              aqui compreendido como espaço de relações de 
              sentidos que investem nos sujeitos formas e gestos de interpretação 
              muito específicos que conformam suas relações 
              sociais. Relações sociais, pois, calcadas nesses sentidos 
              e formas de uma sociedade que se funda pelo efeito da escrita. Transitamos 
              por um imaginário fortemente marcado pela idéia de 
              que a urbanidade de uma língua se dá pela escrita, 
              que tem seu lugar legítimo de "aquisição" 
              remetido à escola. Não 
              poderia deixar de citar aqui João Ribeiro, historiador, gramático 
              e jornalista da passagem do século XIX para o XX: 
               
                | "A 
                    questão de escrever com precisão e razoável 
                    primor a língua que se fala, é uma dessas decências 
                    elementares, dessas virtudes de urbanidade que não 
                    podem ser indiferentes à arte literária" 
                    (grifos meus) (João Ribeiro "A Língua Nacional" 
                    in Cartas Devolvidas.p.125).
                  "Não 
                    podemos conceber a existência de um bom escritor ou 
                    mesmo de escritor aceitável se não se justifica 
                    pela urbanidade da linguagem" (grifo meu) (João 
                    Ribeiro "Da antigramática" in op.cit. p. 
                    112). |  Fatos 
              de linguagem que, no entrelaçamento com outros que veremos 
              a seguir, vão lançando e constituindo olhares para 
              os sujeitos que circulam pela nação brasileira, Remeto-me 
              agora a José Ricardo Pires de Almeida e seu livro L'Instruction 
              Publique au Brésil[5]. Para 
              provar que o Brasil é superior à Argentina 
              o autor apresenta estatísticas que mostram um número 
              maior de escolas no Brasil[6]. 
              Sua escolha pela língua francesa e o argumento estatístico 
              da superioridade brasileira indicam sentidos de uma discursividade 
              dominante do período em que escreve Pires de Almeida (1889). 
              Período em que se dá a gramatização 
              da língua nacional, o que implica em processos de legitimação 
              de um dizer brasileiro, de um poder dizer[7]. 
              Se a língua portuguesa (designação densa de 
              sentidos contraditórios) não se faz capaz, na discursividade 
              que dá lugar para o dizer de Pires de Almeida, de legitimar 
              um lugar para o Brasil (sua evidência), esse dizer é 
              legitimado em língua outra já autorizada. E essa legitimação 
              não está, nessa discursividade, se dando apenas na 
              língua legitimada do outro, ela se dá também 
              na desautorização, deslegitimação de 
              uma nação outra, também colonizada e pertencente 
              ao "Novo Mundo". Vejamos 
              mais. Em outro argumento de superioridade, este referente à 
              relação número de alunos/número de habitantes 
              entre Brasil e Argentina, o autor propõe uma outra forma 
              de contabilizar a população brasileira : 
               
                | "Il 
                  faut se rapeller que ce chiffre de population (brasileira) comprend 
                  les indigènes et les travailleurs ruraux de race africaine. 
                  Il y a lieu aussi de prendre en considération l'immense 
                  étendue du territoire, sur lequel vit, à l'intérieur 
                  du pays, une population très disséminée, 
                  relevant de paroisses dont le siège est à cinq, 
                  six, huit kilomètres et plus de la demeure d'un grand 
                  nombre d'habitants, -- paroisses de deux ou trois cents âmes, 
                  avec une superficie supérieure à celle de bien 
                  des diocèses d'Italie. Cette dissémination rend 
                  impossible la création d'écoles à proximité 
                  de toutes les familles.§ L'esprit de justice exigerait 
                  que, pour comparer (os números brasileiros e os argentinos), 
                  on réduisit de plus de moitié le chiffre de la 
                  population de l'Empire, afin d'asseoir bien sûrement les 
                  calculs de la statistique, car il n'y a peut-être pas 
                  six millions d'habitants placés dans des conditions favorables 
                  à l'établissement et la fréquentation des 
                  écoles primaires publiques ou privées."[8](grifos 
                  meus)[9]. |  Uma 
              nova forma de contabilização da população 
              do Império que nos aproxima dos sentidos imaginários 
              que constituem o ser brasileiro. Os dois argumentos que fundamentam 
              essa proposta nos mostram que os sentidos de pertencimento à 
              "população do Império" estabelecem 
              um recorte, através do escopo referencial produzido dentro 
              da própria enunciação[10]. 
              Fazem parte dessa população aqueles que habitam onde 
              há condição de acesso físico à 
              escola, isto é, onde há proximidade geográfica 
              com os "centros em que se é possível" fazer 
              escolas. Independentemente das condições de estabelecimento 
              de uma escola, 'índios' e 'africanos' não devem ser 
              contabilizados. Distinguem-se, assim, duas dimensões que 
              condicionam o pertencimento a ser brasileiro: "origem" 
              e "lugar de habitação". Dimensões 
              que sem dúvida se intercruzam. Assim, para redimensionar 
              a verdadeira população (legítima) a 
              compor os quadros estatísticos da relação número 
              de aluno/número de habitantes, apresentam-se dois grandes 
              argumentos que sustentam a idéia de que há um número 
              exagerado (equivocado) referente à população 
              brasileira: 1) a existência dos indígenas e trabalhadores 
              rurais africanos que aumentam indevidamente as cifras da população 
              ; 2) a dispersão de grande parte da população 
              no território brasileiro, sendo difícil para o Império 
              construir escolas e para os alunos irem até a escola. A primeira 
              causa do aumento indevido das cifras populacionais não apresenta 
              justificativa : ser índio ou africano justifica-se por si 
              mesmo; no segundo caso a situação de habitação, 
              estar disperso em territórios vastos ou longe dos centros 
              urbanos, impossibilita a construção de escolas o quê, 
              naturalmente, não deve estar contabilizado porque não 
              faz parte da competência do Império. Muitos sentidos 
              estão postos. Pertencer ao Império, à tutela 
              do Império, é poder ir à escola e poder ir 
              à escola faz do indivíduo uma cifra a ser contabilizada 
              na população do Império. E o que não 
              é contabilizado ? E o resto ? Este resto nos aponta 
              para sentidos que conformam o ser brasileiro em uma relação 
              constitutiva com a escolarização: pode ir à 
              escola quem é brasileiro e ser brasileiro é poder 
              ir à escola. Eu diria ainda que esses sentidos apontam para 
              uma relação fundante entre escolarização 
              e urbanidade. Está apto a ser escolarizado aquele que está 
              urbanizado. E volta a mesma uma palavra : civilizado. Tomemos 
              a discursividade do relatório Estatistica da Instrucção[11] 
              da Diretoria Geral de Estatística, escrito em 1916. 
               
                | "Apparecem essas publicações com a maior opportunidade 
                    justamente no momento em que o Congresso Nacional cogita do 
                    assumpto, afim de attenuar os males que o analphabetismo 
                    acarreta á Republica Brazileira, prejudicando o 
                    seu progresso e collocando-o em nivel inferiores á 
                    situação de outros paizes do continente americano. 
                    (...) Dizer a verdade não é um crime de leso-patriotismo. 
                    É um dever não só dos governantes, mas 
                    tambem dos que auxiliam os poderes publicos na obra bemfazeja 
                    do engrandecimento da patria. A verdade, honesta e sinceramente 
                    dita, só pode fazer bem. É o melhor incentivo 
                    para procurarmos corrigir os defeitos que nos deprimem, 
                    como collectividade no confronto internacional".(prefacio 
                    : III) "Na 
                    monographia que serve de prefacio ao inquerito censitario 
                    sobre o ensino, esta comprovada por algarismos irrefutaveis 
                    a precaria situação da maioria dos habitantes 
                    do Brazil quanto ao grao de instrucção, tornando-se 
                    evidente a necessidade da interferencia dos poderes publicos 
                    nacionaes no provimento do ensino elementar."(idem :p. 
                    IV) "Não há progresso intelligente e firme, em instrucção 
                    publica, sem uma bôa estatistica escolar, que incuta 
                    no espirito do povo o sentimento das suas necessidades e dos 
                    sacrificios impreteriveis".(idem ibidem) "Ao novo regimen ficara, assim, com todo o seo pêso, 
                    a tarefa ingente de libertar o povo brasileiro do seo 
                    endemico analphabetismo"(Introdução 
                    : p. XLIII) |  Práticas 
              discursivas que produzem um deslize de sentidos na referência 
              ao problema do analfabetismo enunciado. O problema passa 
              a ser o sujeito referido como analfabeto. Vejamos. O analfabetismo 
              acarreta males ao país, seus habitantes, os índices 
              evidenciam (são marcados por) a precariedade do grau de instrução 
              (não é o país que possui baixo índice 
              de alfabetização, são os habitantes que não 
              possuem instrução), habitantes que devem estar prontos 
              ao sacrifício pela pátria que é perder 
              seu endêmico analfabetismo. A responsabilidade pelo analfabetismo 
              desliza para o analfabeto. Remetendo-me 
              à reflexão de Mariza Vieira (1998), retomo sua análise 
              sobre a igualdade jurídica instaurada pela constituição 
              de 1891 que declara pela primeira vez, no Brasil, todos são 
              iguais perante a lei. Para a autora a declaração 
              dessa igualdade jurídica, que as práticas sociais 
              desmentem, traz a "escrita" como um novo elemento 
              demarcador das diferenças que salvaguardam a manutenção 
              das desigualdades sociais de uma ordem burguesa, urbana e industrial 
              que vem a se contrapor a uma ordem oligárquica, rural e agrícola, 
              tida como desigual. Dois mundos : os bem letrados e os mal letrados, 
              em um confronto estratégico de um só mundo[12]. A escrita, 
              funcionando como esse divisor de águas, instaura para esse 
              sujeito, que estou chamando de urbano escolarizado[13], 
              um lugar de evidência para seu estado de barbárie quando 
              não conformado ao modelo canônico da escrita - a urbanidade 
              da língua, seu lugar moral. A escrita, então, não 
              só pratica a desigualdade como, em seu modo de funcionamento 
              moderno, produz o efeito de culpabilidade, deslocando da ordem do 
              social a produção dessas desigualdades, imputando-a 
              à ordem do individual. Resulta, enquanto efeito, que é 
              da responsabilidade do indivíduo o fato de que, apesar da 
              tentativa da construção da igualdade, não tenha 
              capacidade para ser igual : civilizado. Todos sentidos que, trombando-se, 
              confrontando-se, constituem hoje lugares para o sujeito e seu espaço 
              citadino tomados a partir do lugar fundamental ocupado pela estatística 
              e os efeitos de sua divulgação na conformação 
              de um imaginário sobre cidade, língua, escola e, decorrência 
              constitutiva, sobre o sujeito que vive esses espaços. Claudia 
              Castellanos Pfeiffer é pesquisadora do Laboratório 
              de Estudos Urbanos da Unicamp, Doutora em Lingüística, 
              atua sobretudo em pesquisas sobre a relação constitutiva 
              dos processos de escolarização e urbanização. Notas: 
              Este artigo é resultado de uma síntese de minha 
                apresentação oral na II Jornada Internacional História 
                das Idéias Lingüísticas realizada em 12 de 
                julho de 2001 e de análises realizadas em meu doutorado, 
                Bem dizer e Retórica: um lugar para o sujeito. Tese defendida 
                no IEL, sob orientação da Profa Dra. Eni P. Orlandi, 
                em 2000.[voltar]Todas as rubricas em itálico e sublinhado são 
                minhas. Os negritos são do Jornal.[voltar]Orlandi, 2001.[voltar]Na Análise do Discurso um documento não reflete 
                ideologias, não oculta sentidos, um documento é 
                um monumento (Foucault), isto é, ele faz parte da construção 
                dos sentidos na história que nos toca sempre no entremeio 
                do mesmo e do diferente.[voltar]Almeida, J. R. P. de L'Instruction Publique au Brésil. 
                Leuzinger & Filhos, Rio de Janeiro, 1889. Este livro foi originalmente 
                escrito em francês, o que comentarei mais adiante. Sua tradução 
                foi realizada em 1989 e foi um lugar discursivo de análise 
                no trabalho de Silva (1998).[voltar]Segundo documentos oficiais brasileiros, diz o autor, em 1886 
                havia no Brasil 6.161 escolas primárias, sendo 5.151 públicas 
                e 1.010 particulares. E, somando escolas normais, colégios, 
                liceus, escolas técnicas, faculdades, poder-se-ia contar 
                6.224 estabelecimentos (sem fazer distinção entre 
                públicos e particulares).[voltar]Ver sobre essa questão os trabalhos desenvolvidos no 
                interior do projeto História das Idéias Lingüísticas 
                (Capes-Cofecub), coordenado por Auroux (Paris VII) e Orlandi (Unicamp).[voltar]"É preciso que nos lembremos que essa cifra de população 
                compreende os índios e os trabalhadores rurais de raça 
                africana. É preciso ainda levar em conta a imensa extensão 
                do território, sobre o qual vive, no interior do país, 
                uma população muito disseminada, proveniente de 
                paróquias cuja sede se encontra a cinco, seis, oito quilómetros 
                ou mais de onde residem um grande número de habitantes, 
                -- paróquias de duzentas ou trezentas almas, com uma superfície 
                superior àquela de muitas diocèses da Itália. 
                essa disseminação torna impossível a criação 
                de escolas próximas a todas as famílias. O espírito 
                de justiça exigiria que, para comparar, reduzíssemos 
                em mais da metade a cifra da população do Império, 
                a fim de assentar, com segurança, os cálculos da 
                estatística, porque talvez não haja seis mil habitantes 
                assentados em condições favoráveis ao estabelecimento 
                e à frequentação de escolas primárias 
                públicas ou privadas".[voltar] De agora em diante os grifos são de minha autoria, quando 
                for do autor citado, farei saber o leitor.[voltar]Aqui trabalho enunciação tal como Guimarães 
                (1993:28) a define enquanto «um acontecimento de linguagem, 
                perpassado pelo interdiscurso, que se dá como espaço 
                de memória no acontecimento. É um acontecimento 
                que se dá porque a língua funciona ao ser afetada 
                pelo interdiscurso".[voltar]Diretoria Geral de Estatistica "Estatistica da Instrucção", 
                I parte, em Estatistica Escolar, vol. I, Rio de Janeiro, 1916.[voltar]Pêcheux (1990 :10/11), analisando a revolução 
                burguesa, coloca que sua particularidade consistiu na tendência 
                de "absorver as diferenças rompendo as barreiras". 
                Há uma dupla universalização : "das 
                relações jurídicas e da circulação 
                do dinheiro, das mercadorias e dos trabalhadores livres". 
                essa universalização que instaura todos e cada um 
                como cidadãos chama pela responsabilidade individual. É 
                o sujeito de direito que Haroche (1975) define como conformado 
                por "uma liberdade sem limites e uma submissão sem 
                falhas". Com a revolução burguesa, completa 
                Pêcheux (op.cit.), apaga-se o "choque de dois mundos" 
                para resignificar-se em um "confronto estratégico 
                em um só mundo".[voltar]O sujeito que tendo ou não passado pela escola, por se 
                encontrar em uma sociedade escolarizada, precisa se submeter ao 
                processo de legitimação de seu dizer que passa pelos 
                sentidos da escolarização.[voltar] |