Sobre saberes decoloniais

Por Francielly Baliana

imagem: Mural Presencia de América Latina, de Jorge González Camarena (1964 – 1965) | Casa del Arte, Universidad de Concepción, Chile

Desde a década de 1990 na América Latina, estudos conduzidos principalmente pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano e pelo semiólogo argentino Walter Mignolo levaram a uma sistematização cada vez maior de pesquisas que revisitam a noção de poder conceituada a respeito da modernidade e também a partir dela. Ao analisar as manifestações históricas em relação a essa perspectiva, além de suas continuidades e descontinuidades em uma atualidade de virada de século, Quijano (2010) conceitua a ideia de colonialidade do poder para dar nome ao que entende como um padrão de dominação global, uma espécie de face oculta das chamadas civilizações modernas, que tem origens na conquista da América em conformidade com a constituição do modo de produção capitalista.

É possível notar que essa virada epistemológica dá outro centro às origens da modernidade, tirando-a do eixo Iluminismo-Revolução Industrial e colocando-a na linha conflituosa que se estabeleceu no controle do Atlântico pela Europa, entre o final do século XV e o início do XVI. Conjuntamente a esses fatores, pode ser elencada como substantiva desse tipo de colonialidade a sua estruturação por meio de uma dinâmica de acumulação e de exploração econômica, assim como pela assimetria de suas relações de poder em escala global. Esse desnivelamento, por sua vez, constituiu-se como base da subalternização dos povos dominados – estabelecido a partir de eixos distintos, como de controle do trabalho, da subjetividade, do gênero, das práticas culturais, da natureza etc.

A construção de um campo de produção de conhecimento – centrado no eurocentrismo/ocidentalismo e em uma ideia específica de racionalidade moderna – também resultou na consolidação da colonialidade para além das fronteiras do próprio colonialismo. A consequência direta dessas perspectivas históricas de poder é a construção tanto de um sistema de exploração social que torna todas as formas de trabalho cada vez mais submetidas a uma lógica exclusiva e permanente do capital quanto de uma dominação cultural que controla, oculta e hierarquiza as formas de subjetividades com base em uma perspectiva eurocêntrica de racionalidade ainda atualmente, mesmo após os processos de independência.

A discussão a respeito da colonialidade é nutrida em muitas instâncias pelo menos desde o século XIX, com alguns dos principais movimentos de independência na América Latina. No entanto, ela ganha outras roupagens a partir, principalmente, dos estudos subalternos e pós-coloniais, que embora tenham tido focos distintos na identificação e abordagem das relações colonizador/a /colonizado/a na segunda metade do século XX, buscaram denunciar as diferentes formas de dominação e de opressão, especialmente em um contexto fomentado pelos processos de independência em partes da Ásia e da África. Teóricos como Franz Fanon, Albert Memmi, Aimé Césaire, Edward Said e Ranajit Guha foram influências determinantes para a constituição dessas linhas conceituais, inspiradas por uma reformulação da perspectiva discursiva social a partir principalmente de tradições críticas como as de Michel Foucault e Jacques Derrida; da descentralização da noção de sujeitos e de narrativas contemporâneas, com o pós-modernismo e as contribuições de Jean-François Lyotard; e dos estudos culturais empreendidos em solo britânico, com as reflexões de nomes como Stuart Hall.

Os chamados estudos decoloniais[1] vêm para confirmar uma perspectiva de análise dessas estruturas, com contribuições teóricas e investigativas heterogêneas sobre a colonialidade especificamente na América Latina. Nesse sentido, o giro decolonial abre o que Arturo Escobar (2005) chama de “espaço enunciativo”, cobrindo desde revisões historiográficas e estudos de caso até a retomada de parte do pensamento crítico latino-americano etc., a partir de premissas epistêmicas compartilhadas sobre a problematização da colonialidade em suas variadas perspectivas. Este texto é justamente decolonial na medida em que se pretende refletir a respeito de outras possibilidades de construção de conhecimento, articulando, para isso, um diálogo com vertentes teóricas e culturais – latino-americanas, indianas, francesas, estadunidenses etc. – que parecem capazes de ilustrar a importância da busca de um saber – ou de saberes – que assuma suas próprias diferenças, parcialidades e responsabilidades na construção de sociedades democráticas.

Da colonialidade do ser à colonialidade do saber
A socióloga argentina María Lugones (2007), ao analisar criticamente os trabalhos de Quijano sob a perspectiva de gênero, aponta por exemplo que a noção de colonialidade do poder abarca forçosamente a ideia de que gênero é elemento estruturador de todas as sociedades humanas, algo que, em diálogo com Oyurunke Oyewumi (1997), socióloga nigeriana, não se verifica por exemplo em diversas comunidades africanas, como nos povos yorubá, visto que, antes da escravidão negra e da colonização, tanto as práticas sociais quanto a própria língua desses grupos não comportavam relações de diferenciação e hierarquização a partir do sexo. A idade cronológica era uma das principais métricas que pautavam as relações sociais. Trabalhos como o de Lugones – assim como os de estudiosas ecofeministas que pensam a relação entre colonialidade, gênero, animais não-humanos, meio ambiente – contribuem para que a noção de colonialidade do poder possa ser pensada, também, como uma gama de colonialidades que se interseccionam, como a de colonialidade do ser, do saber, do gênero, da natureza etc.

Na esteira dessas relações, no caso da chamada colonialidade do ser, Nelson Maldonado-Torres (2007) sugere que o que se criou foi a possibilidade de uma desqualificação epistêmica e ontológica do outro, isto é, a existência daquilo que não se enquadra nos termos eurocêntricos foi sistematicamente negada, a partir de um olhar para a centralização do conhecimento na modernidade em torno de uma ideia específica de razão. Esse tipo de dominação, para Enrique Dussel (1994), enquanto parte de uma especificidade analítica, revela o ego conquiro que antecede e sobrevive a um ego cogito cartesiano, pois a perspectiva do “penso, logo existo” oculta a relação com um único tipo de pensar, levando os que não pensam “adequadamente” ou de certo modo a uma existência aparentemente dispensável, apta à dominação.

A ideia de colonialidade do saber manifesta justamente a manutenção dessa ontologia racional, que marcou os núcleos coloniais, para além do colonialismo em si. Se por séculos o modelo europeu foi sistematizado ao redor do mundo como a perspectiva de conhecimento a ser seguida e imposta, a universalização dessa proposta instaurou um modelo normativo que ocupa as mais variadas vertentes de pensamento – das ciências sociais à literatura, passando pelas práticas médicas, a produção de tecnologias e a própria ética científica e mesmo metodológica, do mais localizado reduto escolar às maiores universidades. Essa noção de universalidade implica reproduzir moldes canonizados de maneira naturalizada, sem elaborar perspectivas analíticas que questionem justamente o que os canonizou.

As críticas aos modelos epistêmicos modernos, longe de negarem todas as transformações advindas da modernidade, como os direitos humanos, os direitos das mulheres e as constituições democráticas etc., resultam em revisões que colocam em xeque universalismos aparentemente inquestionáveis, contribuindo para a retomada de uma perspectiva que seja científica do ponto de vista do questionamento e da dúvida em relação também a essas totalizações. Dessa forma, em um viés decolonial, não se trata de negar a ciência e seus métodos, mas de, em um processo meticuloso e pautado em análises sistematizadas e por vezes relacionadas a demandas locais, compreender o que noções de conhecimento centralizadas e universais foram capazes de suprimir – e o que dualismos hierarquizantes são capazes de criar (cultura/natureza; homem/mulher; original/tradução; norte/sul). 

Em Memórias da plantação, Grada Kilomba (2019) ilustra a universalização do conhecimento baseada em um recorte de gênero, de raça, de classe e de localização. A autora, portuguesa com origens em Angola e São Tomé e Príncipe, ao contar sua experiência de intelectual negra na Alemanha, analisa em diversas medidas o quanto os pontos de reflexão científica a que foi submetida foram baseados em epistemologias eurocêntricas e racistas. A reflexão de Kilomba reflete sobre o quanto pessoas brancas, muitas vezes, especialmente em situações de aquisição de conhecimento universitário, são privilegiadas quando as perguntas a elas direcionadas em uma sala de aula se referem ao universo de colonizadores brancos mas são incapazes de responder prontamente a respeito das lutas de independência de nações africanas, por exemplo.

Pode-se, por um lado, afirmar que alguns fatos impactam mais países que outros, ou impactam “igualmente” todos os países, e por isso são dignos de serem sempre estudados. Entretanto, o que Kilomba tem a dizer nesse aspecto é que a determinação do que é mais ou menos relevante para todas as ciências não foi um consenso que envolveu historicamente pessoas negras, indígenas ou de outra raça/etnia que não se enquadre no núcleo eurocêntrico. Não se trata de anular o estudo da história de Portugal, a literatura de Shakeaspeare, o método científico de Francis Bacon, mas de deixar de compreendê-los como os únicos vieses a serem levados em consideração na constituição de um conhecimento válido. Na América Latina, as histórias indígenas, negras, as literaturas periféricas, as ciências desenvolvidas por mulheres, ao serem trazidas à tona, demonstram que a produção de conhecimento, longe de uníssona, dependeu da supressão política e social de inúmeras experiências para a confirmação de um modus operandi aparentemente universal e inequívoco.

"Os temas, paradigmas e metodologias do academicismo tradicional – a chamada epistemologia – refletem não um espaço heterogêneo para a teorização, mas sim os interesses políticos específicos da sociedade branca. A epistemologia, derivada das palavras gregas episteme, que significa conhecimento, e logos, que significa ciência, é a ciência da aquisição de conhecimento e determina que questões merecem ser colocadas (temas), como analisar e explicar um fenômeno (paradigmas) e como conduzir pesquisas para produzir conhecimento (métodos), e nesse sentido define não apenas o que é o conhecimento verdadeiro, mas também em quem acreditar e em quem confiar. Mas quem define quais perguntas merecem ser feitas? Quem está perguntando? Quem está explicando? E para quem as respostas são direcionadas?" (Kilomba, op. cit, p. 50).

Um saber decolonial passa pela análise de que essa pretensa racionalidade científica moderna, mesmo que tenha trazido inúmeros resultados positivos para a qualidade de vida humana, para a criação de tecnologias sociais, sobreviveu a partir do que Dussel chamou de “práxis racional da violência” (Dussel, 2000, p. 472). Os estudos pós-coloniais já explicitavam que “os erros da modernidade vitoriosa nunca foram efeitos perversos, imprevistos, indesejáveis, produtos precoces da incompletude do projeto moderno, mas seus elementos intrínsecos” (Miglievich-Ribeiro, 2014, p. 68). Uma ciência decolonial, portanto, precisa sempre exigir que as categorias explicativas e normativas sejam contextualizadas e não tomadas como absolutas, a fim de que, numa perspectiva global, abra-se a possibilidade de que outros agenciadores, com repertórios e interesses distintos, possam ressignificar suas perspectivas e conteúdos.

Bruno Latour (1994), ao utilizar-se da perspectiva de hibridez advinda da biologia, critica a noção, cara a uma perspectiva ocidental, de árvore do conhecimento que coloca a lógica europeia como enraizadora de uma universalidade com localidades específicas – mas submetidas a um tronco comum e hierárquico. Por outro lado, defende o conceito de rizoma para falar da produção de conhecimento, e nesse viés sua lógica assemelha-se à compreensão apresentada por Gilles Deleuze e Félix Guattari (2010), segundo a qual em um rizoma cada ponto é capaz de conectar-se a todos os restantes e essa sucessão de conexões pode se estender ao infinito visto que não há exterior ou interior nessa espécie de sistema.

Para os críticos franceses, um rizoma é como um modelo descritivo ou epistemológico em que a organização dos elementos não percorre linhas de subordinação ou hierarquias, com uma base ou raiz dando origem a múltiplas ramas, mas se formando a partir da possibilidade de que qualquer elemento afete ou incida em qualquer outro. A ideia de que os conhecimentos – tais como aqueles presentes nos livros, filmes,  músicas, universidades – produzidos por uma perspectiva europeia são melhores ou formadores intrínsecos de toda forma de saber das demais localidades cairia por terra nessas projeções. Ainda que se saiba das técnicas extremamente convincentes para atribuição de valor e de universalidade, especialmente a partir de uma indústria cultural e de um saber científico ancorado em metodologias e abordagens racionalistas (a crítica literária, a leitura cobrada em vestibulares, a historiografia ensinada nas escolas, as linhas teóricas seguidas nas ciências humanas, as metodologias aplicadas nas ciências biológicas etc.), não se pode afirmar que outras localidades, por si só, são incapazes de produção de conhecimento, mas que estão submetidas a uma lógica histórica de silenciamento, a qual paradoxalmente nunca deixou de produzir resistências e de se mostrar potente na criação de saberes próprios e também híbridos.

O discurso de posse de Mãe Stella de Oxóssi na Cadeira nº 33 da Academia de Letras da Bahia, em 2013, revela a potência desses saberes a partir da noção de comprometimento que atravessa a cultura yorubá. A fala da autora demonstra que, nessa cultura, ser comprometida e útil significa cumprir com amorosidade a função a que foi destinada, algo que é específico a cada indivíduo e que o distingue de uma massa totalizante. Assumir-se a partir dessa relação de manutenção e de diferença em relação à ancestralidade parece anunciar uma estrutura de conhecimento e de prática social capaz de empreender resistência a uma lógica de massificação e de universalização, de promover a justiça social ao encarar cada ser com características e capacidades que lhes são próprias.

"Foi assim que aos 51 anos de idade fui escolhida pelos búzios, consequentemente, pelos deuses, para ser iyáloríÿa – mãe de oríÿa, aquela que dá nascimento à essência sagrada de algumas pessoas. [...] Eu já não tinha a inocência dos catorze anos e pude compreender que eu passava a ser um forte elo, sobre o qual se esperava que fosse capaz de segurar e apoiar todos aqueles que buscassem força para atingir degraus mais elevados na existência humana. Uma mãe, no colo de quem muitos buscam conforto, consolo e encantamentos, porque não dizer feitiços, para facilitar a caminhada por este planeta. Ninguém é empossada iyáloríÿa antes de sentar na cadeira especialmente preparada para este mister. Corrente e cadeira, objetos de grande valor simbólico tanto para a religião que pratico – o candomblé, quanto para a Academia de Letras na qual agora sou empossada"(Santos, 2014, p.3).

Mais do que assumir um posicionamento formativo e intrinsecamente ligado à religião, Mãe Stella traz à tona o quanto a própria Academia de Letras é nutrida por ritos sagrados que por vezes são omitidos ou simplesmente reproduzidos sem que se tenha ideia de seu valor simbólico. Ao ressaltar sua relação com assumir a cadeira e desvelar a espécie de imortalidade que esse rito pressupõe, a autora nos permite compreender, por um lado, que as próprias instituições ocidentais de conhecimento estão formadas sobre práticas culturais de caráter mítico e inclusive religioso, mas que essa relação permanece ocultada em nome de uma suposta universalidade objetiva.

A experiência yorubá, ao destacar a noção de aliança e compromisso, carrega uma perspectiva ética associada à singularidade de cada existência e a uma relação intrínseca com a memória e a não massificação, projeções reconhecidas e ensinadas como oriundas de uma intelectualidade ocidental e eurocentrada que vai pelo menos de Aristóteles a Emmanuel Levinás. Essa possibilidade constitutiva de um saber ético enunciado e vivido por uma mulher negra tanto enfrenta uma lógica industrial-capitalista, ao resistir à massificação, quanto revela que o ocultamento desses saberes é fruto de uma racionalidade que se construiu e se financiou sobre o trabalho braçal de seus representantes históricos. Um saber decolonial, entre outros caminhos, passa pelo resgate dessas vozes, por seu reconhecimento e pela problematização a respeito de seu silenciamento histórico, a fim de reconstruir perspectivas teóricas e práticas sociais que estejam atentas aos impactos simbólicos e materiais que essas representações – quando silenciadas ou assumidas – são capazes de produzir socialmente. 

Saberes localizados
Donna Haraway, em seu texto “Saberes localizados” (1995), afirma que as ideias de tradução, de conversão, de mobilidade de significados que sempre foram associadas à ciência perdem credibilidade ética quando uma linguagem é imposta como parâmetro dessas conversões. Em uma comparação com a lógica capitalista, Haraway argumenta que tal reducionismo da perspectiva de significação faz nos campos mentais das ciências aquilo que o dinheiro faz nas trocas do capitalismo: toda forma de experiência social, econômica, cultural está a ele sujeitada; toda forma de ciência fica reduzida a uma comparação hierarquizante que invisibiliza a realidade rizomática de saberes, produzindo o que Boaventura de Sousa Santos (2004) chamou de inexistências.

O argumento da filósofa dialoga efetivamente com aquele trazido à tona pelo giro epistêmico decolonial ao alertar para o risco de um saber que, ao se pressupor universal, é incapaz de ser chamado a prestar contas. A universalidade produz indeterminações que esbarram constantemente em campos éticos, e sua naturalização torna banal a irresponsabilidade a respeito de suas práticas (o uso de um suposto discurso científico para a construção de falsas teorias raciais no século XIX; a legitimação de um imperialismo explorador sob o argumento de civilização e iluminação; o uso de armas de destruição em massa; o uso de tecnologias digitais para a incitação ao consumo de bens e de notícias falsas).

Saberes localizados, para a autora, são formas de conhecimento situadas e corporificadas em torno de uma responsabilidade capaz de ser medida, reavaliada constantemente, aberta ao diálogo democrático. Ao abrirmos o campo científico para perspectivas localizadas, não se elimina a importância de uma política científica, tampouco de expressões mais amplas e mesmo globais de tecnologias sociais. Pelo contrário, desde que a abertura à avaliação crítica venha a partir e conjuntamente com subjetividades que assumam redes de contato e de conexão, é importante que a ciência seja entendida como um campo tensionado[2].

A perspectiva de gênero, cara a Haraway, ajuda a contemplar essa possibilidade de forma mais concreta ao sugerir que tanto a relativização inócua quanto a totalização indefinida partem de pressupostos autoritários que ignoram realidades materiais. É preciso, para vivenciar a objetividade, assumir a relação com o objeto, posicionar-se. Isso implica reconhecer que a relação com o que se pesquisa pode ser mais ou menos próxima, como as teorias sobre o racismo cotidiano para Grada Kilomba, ou a perspectiva tecnológica e ciborgue para pensar as capacidades biológicas em correlação com perspectivas culturais no caso do sexo e do gênero para a própria teoria de Haraway.

No caso latino-americano, o posicionamento de Eduardo Galeano (2013), ao reconstituir narrativamente episódios históricos da América Latina em função de sua correlação com identidades que se formaram em processos de opressão, mas também de resistência, em contato com diversas fontes da sociologia, da antropologia e da história, aponta para um saber que se localiza e que inclusive pode ser chamado à responsabilidade por correr o risco de narrar em nome de grupos subalternizados. Longe de fugir dessa possibilidade, Galeano parece ter encarado esse processo como uma maneira de contribuir para a conjunção de espaços rizomáticos e de estimular a produção de saberes que se teçam como medida enunciativa e não totalizante sobre um ponto de vista. Nesse mesmo sentido, Haraway afirma que “o único modo de encontrar uma visão mais ampla é estando em algum lugar em particular. A questão da ciência para o feminismo diz respeito à objetividade como racionalidade posicionada” (Haraway, 1995, p. 33).

Se a possibilidade crítica, estética, de recepção, por exemplo, do rap e do slam colocam em questão a legitimidade universal e o próprio crivo de análise dos cânones da literatura e dos valores conceituados pela crítica e a teoria literária, a relação de indígenas com a terra – como a trazida à tona para o campo intelectual por nomes como o do yanomami Davi Kopenawa (2010), e para o campo poético e do ativismo social e de gênero como realiza Eliane Potiguara (2004) – também contribuem para se alterar o lugar específico do saber, tirando-o de uma lógica apenas submetida a uma ciência utilitarista, capitalista e positivista. A relação com uma colonialidade do saber incide fortemente, nessas instâncias, na ideia de colonialidade da natureza, do gênero e do próprio ser. A existência subjetiva desses indivíduos, sua relação com a cultura, com a natureza, expressam saberes inapreensíveis por uma racionalidade moderna fechada em si mesma.

No entanto, os posicionamentos específicos e localizáveis dos chamados subjugados, ao contrário do que se pode pensar, não estão isentos de reavaliação crítica, de decodificação, desconstrução e interpretação. O que nos ensina Donna Haraway é que nenhuma perspectiva deve ser vista como inocente. 

Ao contrário, elas são preferidas porque, em princípio, são as que têm menor probabilidade de permitir a negação do núcleo crítico e interpretativo de todo conhecimento. Têm ampla experiência com os modos de negação através da repressão, do esquecimento e de atos de desaparição – com maneiras de não estar em nenhum lugar ao mesmo tempo que se alega ver tudo (Haraway, 1995, p. 23).

Gayatri Spivak (2010), ao se perguntar se o subalterno pode falar, mais do que reivindicar um lugar para a fala historicamente silenciada de diversos grupos, alerta para o fato de que o que eles têm a dizer é recorrentemente interpretado como simplista e pouco complexo. A complexidade do pensamento humano é justamente reduzida a um pequeno grupo que detém poder, certa cor de pele e assume certa sexualidade.

A virada decolonial, nessa linha, acaba por trazer à tona que pesquisadoras/es e também os próprios objetos de pesquisa científica também são, em muitas medidas, agentes ativos. A lógica antropocêntrica e humanista falhou miseravelmente ao deixar como legado o fato de que o único ser vivo que importa, que se movimenta, que se deteriora ou se recupera é o ser humano. Contudo, se a concepção de humano, por séculos conceituada como masculina, branca, europeia, apropriadamente vem desnaturalizando sua posição, é porque, em alguma instância, desde os primórdios, os objetos – mulheres, crianças, idosos, homossexuais, escravas/os, analfabetas/os, animais, povos subjugados, natureza etc. – foram capazes de suscitar seu próprio movimento, foram capazes de resistir.

Um saber localizado e também subjetivo é justamente um caminho para essa objetividade ética, que vê o outro (seja ele humana/o, animal, um elemento da natureza) como sujeito ativo, de maneiras muitas vezes inapreensíveis, e que encara a pesquisa, o saber e a expressão como processos distintos e não hierarquizantes de construção do conhecimento, como uma rede compartilhada pelas mais variadas perspectivas e pontos de vista, enredados pelo diálogo e pela subjetividade. Tal postura, mais do que oposta à objetividade, torna concreta e corporificada a relação com o objeto, relação esta que, ao ser assumida, pode ser observada, sentida, avaliada, criticada; pode ser a base de uma ciência pós-ocidental e decolonial, de uma ciência cada vez mais ética e democrática.

Francielly Baliana é professora de literatura e jornalista. Especialista em jornalismo científico pelo Labjor-Unicamp e mestra em letras pela Unifesp, atualmente faz doutorado em teoria literária e literatura comparada pela USP.

Referências bibliográficas

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[1] Não há um consenso teórico a respeito do uso de decolonial ou de descolonial. Muito embora a maioria dos estudiosos do assunto, como Walter Mignolo, prefira a supressão do “s”, o próprio Aníbal Quijano opta pelo uso da letra. Catherine Walsh (2010) afirma que a supressão do “s” tem relação com a marcação proposital de uma diferença dentro da própria palavra em sua escrita e expressão, ilustrando o quanto o que se pretende fazer com o colonial não é anulá-lo, ou descolonizá-lo no sentido clássico do colonialismo, mas superá-lo em outros aspectos.

[2] Neste texto, o uso de perspectivas teóricas e analíticas tanto de um universo europeu/norte-americano, quanto de um ponto de vista latino-americano, indiano, africano, etc., visa a construir um saber que assume sua posição localizada e influenciada por correntes teóricas de base ocidental, mas que percebe na confluência dessas perspectivas com outras a possibilidade de uma enunciação que se proponha rizomática, não acabada e em diálogo com outras possibilidades interpretativas e analíticas de problemáticas ainda mais locais ou específicas em termos decoloniais.