Fim da gratuidade no ensino superior não tornaria educação brasileira menos desigual, afirmam especialistas

Por Suzana Petropouleas

Pesquisadores de educação e economia comentam alternativas para o ensino superior

No início do ano, foi aprovada no Chile a lei de gratuidade no ensino superior, parte da proposta da gestão da presidente Michelle Bachelet que determina a retomada do ensino gratuito no sistema chileno, cerca de 30 anos após as reformas privatizantes do ditador Augusto Pinochet, que reduziram recursos públicos para a educação, tornaram todo o ensino superior pago e impulsionaram a multiplicação das universidades privadas no país.

A decisão atende a protestos dos estudantes chilenos, realizados desde 2010, contra um modelo de ensino que, apesar de apresentar bons indicadores de qualidade, submetia os estudantes às mensalidades mais caras da América Latina e a um alto nível de endividamento das famílias para custear a educação.

Até 2016, 70% dos estudantes do ensino fundamental e médio e 100% dos universitários chilenos pagavam mensalidade. Em 2020, o objetivo é universalizar a educação gratuita no país. Ao comentar a aprovação, a presidente afirmou que a aprovação da lei “devolve ao Estado chileno seu papel de protagonista, em assegurar uma educação pública de qualidade”.

A gratuidade tem sido implementada gradativamente desde 2016, antes mesmo da aprovação do marco legal, e o objetivo é universalizá-la no Ensino Superior até 2020. Para tanto, serão necessários cerca de US$ 5,5 bilhões, ou 1,7% do PIB chileno – um desafio para o país que, em 2017, registrou o maior déficit fiscal desde 2009.

Em novembro de 2017, o Banco Mundial publicou relatório sobre a sustentabilidade das contas públicas no Brasil, encomendado em 2015 pelo ministro da Fazenda à época, Joaquim Levy (governo Dilma Rousseff). O documento “Um ajuste justo – análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil” analisa os gastos do governo brasileiro com serviços públicos e defende reformas e cortes na previdência, saúde e educação. O ensino superior público é descrito no documento como ineficiente e regressivo – ou seja, paga mais quem é mais pobre – e o documento defende o fim de sua gratuidade. Universidades públicas como Unicamp e USP deveriam passar a cobrar mensalidades, assim como estabelecido em 1981 no Chile de Pinochet.

Velha resposta para novos problemas
Após a divulgação, o relatório foi amplamente criticado por especialistas em educação e finanças públicas, especialmente por oferecer uma análise superficial sobre questões estruturais da educação brasileira. Peter Schulz, secretário de Comunicação da Unicamp, define o documento como “uma resposta simples e, portanto, errada, para um problema complexo”.

Para Helena Sampaio e Ana Maria Carneiro, pesquisadoras do Laboratório de Estudos de Educação Superior (LEES) do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da instituição, o relatório parte de pressupostos ultrapassados sobre a educação brasileira e sugere uma solução também datada. “A análise do relatório não dá conta das transformações do próprio sistema de ensino superior e dos papéis tão diferentes que as instituições de ensino desempenham na sociedade brasileira. O Banco Mundial sempre faz a mesma avaliação. O ensino superior se transforma, inclusive se ‘democratiza’ e segmenta, e o diagnóstico e a solução proposta – a cobrança de mensalidades – são sempre os mesmos. Isso ocorre há cerca de 20 anos pelo menos, que eu me lembre”, afirma Helena Sampaio, professora da Faculdade de Educação da Unicamp.

Ana Maria Carneiro, doutora em política científica e tecnológica, aponta que a dicotomia entre público e privado – ou pago e gratuito – é muito simplista para entender o sistema superior brasileiro atual e seus desafios. “Ambos sistemas são intrinsecamente muito heterogêneos – não só em termos de origem de recursos, mas também de tipo de instituição”.

A rede pública de ensino superior no Brasil conta hoje com as grandes instituições de renome em pesquisa, mas também instituições de missão mais regionalizada e aquelas focadas em educação tecnológica, voltada ao ensino profissionalizante. Na rede privada, os grandes conglomerados com fins lucrativos coexistem com universidades tradicionais sem fins lucrativos, bem como instituições comunitárias e confessionais, centros de pesquisa e extensão de grande impacto em suas regiões e centros profissionalizantes, todos com mensalidades que variam entre centenas e milhares de reais.

Para a pesquisadora, essas instituições também são importantes se o país realmente pretende cumprir a meta de elevar, até 2024, a taxa bruta de matrícula da população de 18 a 24 anos na educação superior para 50%, e a taxa líquida para 33%, conforme consta no Plano Nacional de Educação – lei ordinária prevista no artigo 214 da Constituição Federal e que vigora desde 2014. Em 2010, mais da metade (52%) da população brasileira com idade entre 18 e 24 anos sequer haviam concluído o ensino médio.

Aumentar a diversificação de tipos de instituição e diplomas – mantendo a qualidade e equidade no acesso – é a solução proposta pelos pesquisadores do LEES para democratizar o ensino superior no Brasil, atendendo diferentes demandas do mercado de trabalho e dos próprios alunos em suas trajetórias acadêmico-profissionais. “É o caso, por exemplo, de cursos sequenciais de dois anos, como o Programa de Formação Interdisciplinar Superior da Unicamp, ou aqueles oferecidos pelas community colleges americanas”, explica Carneiro. “O problema é que o sistema de regulação da educação atual empurra as instituições para o formato tradicional de graduação de 4 anos, voltado para formar pesquisadores e professores.” A resposta, portanto, não é transformar a universidade pública, que tem cumprido com excelência seu papel de unir ensino à pesquisa e extensão, em um serviço pago, mas oferecer alternativas de qualidade a ela.  “Além disso, a lógica de contrapor o sistema público versus privado esquece o fato que o Estado também financia grande parte do sistema privado, via subsídios fiscais ou crédito subsidiado (caso do ProUNI e FIES, respectivamente)’’, explica.

Cobrança não cobriria custos ou reduziria desigualdade
Há controvérsias também sobre a eficiência econômica e social da cobrança. Em sua análise, o relatório do Banco Mundial compara a eficiência de faculdades privadas – com ou sem fins lucrativos, focadas na graduação – com a eficiência de públicas, cujas atividades (e, portanto, gastos) baseiam-se amplamente no tripé ensino, pesquisa e extensão, da graduação ao pós-doutorado. A comparação tem sido alvo de críticas de acadêmicos de diversas áreas, bem como as medidas propostas por seus autores, como aumento do número de alunos por turma e limite de gastos baseado nas instituições mais custo-eficientes, e não de melhor qualidade educacional.

Maurício Coutinho, professor do Instituto de Economia da Unicamp, com experiência em economia do setor público, aponta equívocos flagrantes do relatório, para além da análise sobre a educação brasileira. “Uma mera passada de olhos no início do relatório, na parte sobre previdência, já me mostra que a ignorância de seus autores sobre o sistema previdenciário brasileiro, em particular o regime geral, é absoluta. Imagino que o financiamento da universidade, assunto menos conhecido ainda, tenha gerado por parte dos consultores equívocos imensos”, sugere o pesquisador.

Especialistas em finanças públicas e economia fiscal, os professores de economia do setor público na mesma instituição, Geraldo Biasoto e Francisco Lopreato, concordam. “A avaliação do custo por aluno realizada pelo documento incorre num erro básico. O custeio das instituições públicas de ensino superior inclui dois objetivos: o ensino e a pesquisa. Ou seja, dividir o gasto realizado pelo número de alunos matriculados confunde o tempo gasto em sala de aula com o tempo dedicado à pesquisa – pela qual os docentes são cobrados até para a permanência em seus empregos nas universidades”, explica Biasoto. E justifica: “Achar que o financiamento das instituições se resolveria simplesmente fazendo com que os alunos pagassem todo o custo significaria que os alunos teriam também que pagar pela pesquisa realizada na universidade. Estabelecer o pagamento dos alunos pelas aulas que eles recebem poderia significar algo como 25% a 30% do custeio total das universidades. Ao se retirar os casos de impossibilidade de pagamento, teríamos uma imensa confusão para cobrar os alunos e, ainda assim, isso significaria poupar apenas cerca de 15% ou 20% do custeio atual das universidades”.

Lopreato, por sua vez, aponta outras limitações do modelo proposto. “Democratizar o acesso das pessoas de menor renda às universidades públicas e fazer com que as famílias ricas paguem mais por seus altos rendimentos seriam caminhos a favor de uma sociedade mais justa e trariam resultados melhores do que obrigar os alunos a pagarem por sua educação. Esta medida, por si só, não altera o status quo da educação e da sociedade brasileiras”.

Maurício Coutinho também reforça a dificuldade mencionada pelos colegas para estabelecer cobranças adequadas – e, de fato, progressivas – na universidade e é ainda mais cético sobre o efeito positivo que a cobrança teria sobre o orçamento das instituições públicas. “É diferente com uma escola privada, que simplesmente estipula a mensalidade. Na pública, como comprovar a renda familiar? Todos sabemos que a declaração de imposto de renda é uma farsa, salvo para poucos assalariados. Agora, com a nova legislação trabalhista, apenas os servidores públicos serão assalariados com renda clara, declarada e tributada. Se a renda dos alunos for, para efeito de cobrança, ‘means tested‘, pagarão mensalidades apenas os filhos de professores universitários, juízes, delegados da polícia federal… O resto dos ricos escapará completamente”.

O método conhecido como means test é baseado em uma verificação completa do nível de renda e riqueza através da comparação da renda declarada com outras fontes de comprovação (holerites, imposto de renda e registros de propriedade). Mesmo quando eficaz, incorre em elevados custos administrativos, pressupõe comprovantes confiáveis e requer investimento de recursos e pessoal administrativo para processamento e reavaliação das informações.

“É óbvio que no Brasil, qualquer pagamento de universidade pública acabará sendo nesse formato means tested e, assim, afetará apenas os filhos de funcionários públicos de rendas altas e médias”. A análise do pesquisador suscita também o caráter ideológico das medidas propostas pelo Banco Mundial. Se a ideia é cobrar de quem pode pagar, mas a legislação atual não permite a determinação precisa de quem são esses alunos, o sistema se manteria injusto e desigual.

Para Biasoto, o relatório também é problemático devido à visão equivocada sobre o público atendido pelas universidades. “Há um problema de foco na análise. Na verdade, os pobres aos quais o documento se refere são os miseráveis, aqueles que raramente chegam às políticas universais. Já os ricos aos quais o documento se refere são os filhos da classe média brasileira, porque aqueles que são efetivamente ricos estudam no exterior”, esclarece.

“O grave nisso tudo é que a proposta de cobrar filhos da classe média significa romper um dos poucos elementos de coesão social de nossas políticas. A classe média, que paga todo o tributo direto do país, tem a chance de formar seus filhos sem pagar – e o sistema também beneficia muita gente que não tem renda suficiente para ser tributado pelo imposto de renda. Ou seja, há um movimento de solidariedade entre classes de renda no seio de nosso ensino superior. Cobrar o filho da classe média, que já sustenta o financiamento das políticas universais, é romper um dos poucos pactos sociais do país”, explica o pesquisador, contrapondo o argumento do relatório do Banco Mundial, que sugere que o ensino gratuito enfraquece a coesão social devido ao seu caráter regressivo.

Lopreato completa: “É preciso bancar um projeto de nação que tenha como objetivo básico reduzir a desigualdade, ampliar o acesso de alunos de baixa renda e alterar a cobrança do imposto de renda das famílias mais ricas. O IR, como vários estudos apontam, é regressivo a partir de contribuintes com renda superior a 40 salários mínimos. A maior taxação iria ajudar a custear os gastos públicos e reduzir a iniquidade existente”.

À parte os erros econômicos apontados no relatório, pesquisadores ressaltam a necessidade de debate fundamentado sobre as questões propostas. “A educação brasileira, especialmente no ensino superior, tem imensos problemas de financiamento e justiça, e precisa reorganizar sua gestão, o que só é possível com compromissos políticos entre os atores econômicos e sociais”, pondera o professor Biasoto.