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Ugo Giogetti: “Tento fazer uma coisa que deixe a impressão do que era o mundo que eu vivi”.

A filmografia de ficção predomina no debate público sobre a carreira e o cinema de Ugo Giorgetti. As entrevistas que o cineasta concedeu quase sempre versam sobre aspectos de criação e produção de seus longas-metragens premiados ou bem-sucedidos em relação ao público. Essa conversa recupera o Ugo Giorgetti documentarista, apresenta o memorialista e põe em evidência o literato. A partir de depoimentos sobre o documentário Santana em Santana, a série de entrevistas O cinema por quem o faz e a minissérie para televisão O cinema sonhado, não só o documentário como, pincipalmente, a não ficção de Giorgetti é revelada através de sua própria voz.

Por Liniane Haag Brum Continue lendo Ugo Giogetti: “Tento fazer uma coisa que deixe a impressão do que era o mundo que eu vivi”.

Autolesão na adolescência: jovens relatam em cartilha estratégias para aliviar o sofrimento mental

Fernanda Bassette | Agência FAPESP – A adolescência é uma fase de intensas transformações emocionais e sociais, momento em que muitos jovens enfrentam desafios psicológicos significativos – entre eles o isolamento social e a autolesão, prática de ferir a si mesmo sem intenção suicida. Estima-se que um em cada sete adolescentes apresente sofrimento mental e que cerca de metade desses casos tem início antes dos 14 anos. Além disso, estima-se que 14% dos adolescentes já tenham se autolesionado pelo menos uma vez na vida, utilizando esse comportamento como uma tentativa de lidar com angústias internas, como depressão, ansiedade ou traumas.

Esse tipo de comportamento não é apenas um sintoma isolado, mas sim reflexo de um sofrimento profundo que impacta diretamente a qualidade de vida do jovem. A autolesão pode afetar a autoestima, as relações interpessoais e o desempenho escolar, além de aumentar o risco de suicídio. Não à toa, a saúde mental de adolescentes tem se tornado uma preocupação global nos últimos anos no mundo todo, especialmente após a pandemia de COVID-19. Estudos indicam que, durante a crise sanitária, os sintomas de depressão aumentaram 26% e os de ansiedade cresceram cerca de 10% entre jovens de até 19 anos. No Brasil, o número de casos de autolesão entre jovens aumentou 21% entre 2011 e 2022.

Em 2018, antes da pandemia, a psicóloga Luiza Cesar Riani Costa, então aluna da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), realizou um projeto de iniciação científica financiado pela FAPESP com o objetivo de compreender as questões relacionadas à autolesão não suicida entre jovens, ou seja, como adolescentes que vivenciavam essa experiência conceituavam esse fenômeno e por que isso acontecia. Os resultados revelaram que os adolescentes viam a autolesão como uma forma de aliviar o sofrimento emocional, destacando a importância de um ambiente acolhedor para lidar com a dor psíquica.

“Na época, o fenômeno da autolesão era relativamente novo no Brasil, mas ganhou destaque após alguns desafios nas redes sociais incentivarem muitos adolescentes a se cortarem. Uma escola estadual de São Carlos, onde tínhamos projetos, notou o aumento de casos e nos incentivou a pesquisar o tema”, conta a professora Diene Monique Carlos, que hoje atua na Universidade de São Paulo (USP), no campus de Ribeirão Preto.

Após o trabalho de iniciação científica, Costa deu continuidade aos estudos sobre autolesão entre adolescentes durante seu mestrado na mesma universidade. Também financiado pela FAPESP, o estudo aprofundou o significado da prática de autolesão não suicida.

Os achados da pesquisa se transformaram na cartilha O que alivia a minha dor: fotos e experiências de adolescentes, que foi disponibilizada digitalmente para escolas, serviços de saúde e profissionais que trabalham com adolescência. Além disso, a experiência foi apresentada no 15º Congresso Ibero-Americano de Investigação Qualitativa (CIAIQ2025), na Espanha, e publicada na New Trends in Qualitative Research.

A origem da cartilha

Para chegar ao desenvolvimento da cartilha, Costa iniciou uma pesquisa de abordagem qualitativa, ou seja, que não pressupõe uma grande quantidade de pessoas participando, já que o objetivo era aprofundar no entendimento do que estava acontecendo. Ao todo, foram avaliadas nove adolescentes entre 12 e 17 anos que estavam em sofrimento psíquico, tinham histórico de autolesão e buscaram espontaneamente participar do projeto.

Um dos pontos de destaque é que todas as adolescentes eram do gênero feminino – uma coincidência, já que meninos também foram convidados a participar, mas não manifestaram interesse. “Percebemos uma forte questão de gênero presente, então pensamos num outro projeto para olhar especialmente para os meninos. Por que eles não buscam ajuda?”, detalhou a professora Diene Carlos, orientadora do projeto.

Costa partiu da seguinte pergunta: “O que alivia a sua dor?” e pediu que as adolescentes respondessem à questão por meio de fotografias feitas por elas mesmas, apresentando outras estratégias que usariam para passar por situações difíceis e que lhes causam dor, desde que não fosse a autolesão. Para isso, a pesquisa usou a metodologia Photovoice, técnica amplamente aplicada em contextos de vulnerabilidade, na qual imagens são usadas como forma de expressão para abordar temas delicados. “É uma metodologia muito usada por pesquisadores para situações em que é difícil falar sobre determinado assunto”, explica Carlos.

As participantes tiveram duas semanas para fotografar cenas que respondiam à questão – ao final do prazo, Costa recebeu 50 imagens. A ideia inicial era fazer a discussão das fotos em conjunto com as adolescentes, mas, devido à pandemia, não foi possível (as entrevistas ocorreram entre os meses de março e julho de 2021). Por isso, a análise do material foi feita individualmente. As fotos serviram como ponto de partida para reflexões mais profundas, guiadas por perguntas como: “O que você vê nesta fotografia?”, “O que a motivou a tirar essa foto?”, “O que essa imagem desperta em você?” e “Como isso se relaciona com a autolesão?”.

As imagens retratavam cenas na natureza, com animais de estimação, realização de atividades físicas (como andar de skate ou de bicicleta), momentos de culinária, artes (com desenhos, músicas, filmes), afeto e espiritualidade. Após a realização de uma análise reflexiva, as próprias adolescentes apresentaram a ideia de construírem conjuntamente uma cartilha em que elas pudessem divulgar as fotos e o que elas significavam como uma forma de chamar a atenção para o assunto e ajudar outros adolescentes que pudessem estar sofrendo também.

“O contato com as meninas mostrou que o que estavam fazendo era mais complexo e profundo do que apenas criar estratégias de enfrentamento. Elas estavam mostrando de forma totalmente criativa o que as sustentava”, escreveu a autora do estudo em uma carta ao leitor apresentada com a defesa pública do mestrado.

Segundo Carlos, ao analisar as fotografias produzidas pelas adolescentes, foi possível identificar elementos comuns entre elas, apesar das particularidades individuais: o foco na natureza, a importância das relações afetivas, a presença da família, o carinho pelos animais, a música, os filmes e outras formas de expressão artística. “Encontramos muitas semelhanças e similaridades entre as imagens e, por isso, concluímos que isso também poderia fazer sentido para outros adolescentes. Para nós, esse foi o momento mais bonito da pesquisa, já que a ideia original não era termos uma cartilha”, conta a orientadora.

A publicação está disponível em português e inglês e tem potencial de ser uma importante ferramenta terapêutica e educativa de baixo custo, especialmente por utilizar uma linguagem acessível e coerente com o universo dos adolescentes. “A autolesão ainda está muito presente na vida desses jovens como uma forma de aliviar a dor e o sofrimento. Por isso esse instrumento pode ser usado para pensarmos outras possibilidades de alívio dessa dor”, avalia Carlos.

A cartilha O que alivia a minha dor: fotos e experiências de adolescentes está acessível no Repositório Institucional da UFSCar e pode ser consultada em: repositorio.ufscar.br/server/api/core/bitstreams/ddb95d76-9252-4e7d-90b8-96b0e805555a/content.

Toxina de escorpião da Amazônia é capaz de matar células de câncer de mama

Elton Alisson, de Toulouse | Agência FAPESP – O veneno de uma espécie comum de escorpião amazonense pode dar origem a um potencial medicamento para o tratamento de um câncer que é uma das principais causas de morte em mulheres.

Pesquisadores da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FCFRP-USP) identificaram na toxina do Brotheas amazonicus uma molécula com ação contra células do câncer de mama comparável à de um quimioterápico comumente usado no tratamento da doença.

Resultados preliminares do estudo, feito em colaboração com pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), foram apresentados durante a FAPESP Week França, que aconteceu entre os dias 10 e 12 de junho na capital da região da Occitânia, no sul do país europeu.

“Conseguimos identificar por meio de um trabalho de bioprospecção uma molécula na espécie desse escorpião amazônico que é semelhante à encontrada em peçonhas de outros escorpiões e com ação contra as células do câncer de mama”, disse à Agência FAPESP Eliane Candiani Arantes, professora da FCFRP-USP e coordenadora do projeto.

Por meio de projetos apoiados pela FAPESP no âmbito do Centro de Ciência Translacional e Desenvolvimento de Biofármacos (CTS), situado no Centro de Estudos de Venenos e Animais Peçonhentos (Cevap), da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Botucatu, os pesquisadores vinculados à instituição têm se dedicado a realizar a clonagem e expressão de moléculas bioativas, como proteínas de peçonha de cobras cascavel e de escorpiões, por exemplo.

O trabalho já resultou no desenvolvimento de um produto patenteado pelo Cevap chamado selante de fibrina – uma “cola biológica” que utiliza uma serinoproteinase extraída de veneno de serpentes, como a Bothrops neuwiedi pauloensis e a Crotalus durissus terrificus, combinada com um crioprecipitado rico em fibrinogênio, extraído do sangue de bubalinos, bovinos ou ovinos.

Esse componentes são combinados no momento da aplicação e formam uma rede de fibrina que imita o processo natural de coagulação e cicatrização. O selante tem sido estudado para colagem de nervos, tratamento de lesões ósseas e até mesmo na recuperação do movimento após lesões medulares e está em avaliação em estudos clínicos de fase 3 – a etapa final de análise de um novo medicamento antes de ser aprovado para comercialização.

Mais recentemente, os pesquisadores conseguiram clonar e expressar outra serinoprotease de cascavel, denominada colineína-1, que apresenta um aminoácido diferente da toxina giroxina, extraída diretamente da peçonha de cascavel e usada na produção do selante de fibrina.

“Nossa ideia, agora, é obter essa serinoprotease por expressão heteróloga [em um fragmento ou gene completo de um organismo hospedeiro que não o possui naturalmente] em Pichia pastoris“, disse Arantes.

Por meio da expressão heteróloga nessa levedura isolada em 1950, na França, os pesquisadores também pretendem obter um fator de crescimento endotelial, chamado CdtVEGF, identificado na espécie de cascavel Crotalus durissus terrificus.

“Esse fator de crescimento favorece a formação de novos vasos. Se juntarmos ele com a colineína-1, podemos criar um selante de fibrina melhorado em relação ao que está sendo desenvolvido no Cevap, com possibilidade de ampliar a escala industrial, uma vez que pode ser obtido por expressão heteróloga”, comparou a pesquisadora.

Ainda por meio da expressão heteróloga, os pesquisadores identificaram em escorpiões duas neurotoxinas com ação imunossupressora. E em parceria com colegas do Inpa e da UEA constataram que o veneno do escorpião Brotheas amazonicus possui uma molécula bioativa, batizada BamazScplp1, com potenciais propriedades antitumorais.

Os resultados de testes do peptídeo em células de câncer de mama revelaram que ele apresenta resposta comparável ao paclitaxel, um quimioterápico comumente utilizado no tratamento da doença, induzindo a morte das células principalmente por necrose – um ação semelhante à de moléculas identificadas em outras espécies de escorpiões.

“Também pretendemos obter essas moléculas por expressão heteróloga”, antecipou Arantes.

Novas terapias

Já em Campinas, no interior de São Paulo, um grupo de pesquisadores vinculados a um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID), financiado pela FAPESP – o Centro de Inovação Teranóstica em Câncer (CancerThera) –, pretende viabilizar no Brasil uma nova abordagem no combate da doença, que integra diagnóstico e tratamento direcionado.

A nova abordagem, iniciada na Alemanha, consiste em marcar com diferentes radioisótopos moléculas-alvo de vários tipos de tumores e utilizá-las tanto para o diagnóstico por imagem como para o tratamento.

“Dependendo do tipo de radiação emitida pelo isótopo que acoplamos à molécula – se pósitron ou gama –, conseguimos produzir imagens dela por meio de equipamentos de tomografia disponíveis no CancerThera. Ao documentarmos que um isótopo capta muito uma determinada molécula, podemos substituí-lo por outro que emite uma radiação mais intensa localmente e, dessa forma, tratar tumores”, explicou Celso Darío Ramos, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp) e um dos pesquisadores principais do CancerThera.

Um grupo de pesquisa básica do centro tem se dedicado a identificar novas moléculas e avaliar se elas se acumulam em determinados tipos de cânceres. Já uma equipe clínica tem se voltado a identificar novas aplicações para moléculas já conhecidas.

“Temos estudado moléculas conhecidas de cânceres hematológicos, principalmente mielomas múltiplos, além de outras não conhecidas de câncer de cabeça e pescoço, de fígado, sarcomas, de pulmão, colorretal e gástrico, entre outros. Além disso, também temos estudado câncer de tireoide, que já é tratado com material radioativo há muitos anos, o iodo radioativo, mas alguns pacientes têm resistência. Por isso, estamos tentando identificar outra possibilidade de tratamento, com um material radioativo diferente, para esses pacientes”, disse Ramos à Agência FAPESP.

Vacina contra o câncer

Outra nova abordagem em desenvolvimento por pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) é uma imunoterapia contra o câncer baseada em células dendríticas.

Esse tipo de célula desempenha um papel único na fisiologia do sistema imunológico e é afetada em pacientes com câncer, explicou José Alexandre Marzagão Barbuto, professor do ICB-USP e coordenador do projeto.

“Há alguns anos se descobriu que é possível pegar monócitos de células do sangue de pacientes com câncer e transformá-las em células dendríticas, no laboratório. Mas as células dendríticas produzidas dessa forma são muitas vezes desviadas para induzir tolerância.”

A fim de contornar esse viés da função dessas células, os pesquisadores produziram células dendríticas de doadores saudáveis e as fundiram com as células de pacientes com câncer a fim de criar uma vacina para imunizá-los contra seus próprios tumores.

Os resultados obtidos em vários tipos de câncer e, mais recentemente, em pacientes com glioblastoma, sugerem que isso pode ser uma abordagem eficaz, uma vez que seja possível conduzir e controlar a resposta imune induzida pela vacina.

“O sistema imune interpreta essa vacina, baseada em células dendríticas de um doador saudável fundidas com as células do tumor do paciente, como um transplante e reage com violência”, afirmou Barbuto. “Fizemos os primeiros estudos em pacientes com melanoma e câncer de rim, cujos resultados foram muito bons, e outros com glioblastoma. Agora, estamos na expectativa de realizar um estudo clínico de fase 3.”

IA na ressonância magnética

O avanço na compreensão e tratamento do glioblastoma também tem sido o foco de pesquisadores do Instituto Universitário do Câncer de Toulouse, que têm avaliado se a inteligência artificial aplicada à ressonância magnética pode determinar com precisão se pacientes em quimioterapia apresentam uma modificação no DNA que é útil para prever quanto tempo poderão viver e como responderão ao tratamento.

A modificação é conhecida como “metilação da região promotora da MGMT” e também pode afetar a maneira como a proteína MGMT é produzida e modificada.

“O estado de metilação da MGMT é um importante fator prognóstico, mas requer biópsias que não são necessariamente representativas de todo o tumor e podem variar na recidiva”, explicou Elizabeth Moyal, pesquisadora do IUCT-Oncopole e coordenadora do projeto.

A pesquisadora, em colaboração com o cientista da computação Ahmda Berjaoui, da IRT Saint-Exupéry, tem empregado técnicas de inteligência artificial já aplicadas no setor aeroespacial para superar essas barreiras.

“Desenvolvemos um modelo capaz de prever a sobrevida com alta precisão, variando de 80% a 90%, e que supera outras técnicas existentes”, afirmou Berjaoui.

Leia mais notícias e informações sobre a FAPESP Week França em fapesp.br/week/2025/france.

foto: Escorpião Brotheas amazonicus / crédito: Pedro Ferreira Bisneto/iNaturalist